sábado, 27 de março de 2010

Das coisas que gostamos

Dos segredos da vida, do futuro e dos mistérios da nossa vida interior (Feira Esotérica em Oeiras, dias 25, 26 e 27 de Março).

Da mudança de hora de Verão (domingo dia 28 de Março) que é sinal de dormir menos mas também que o sol vem aí em força.

Das noites de lua cheia (a próxima é já 2ª-feira, dia 29 de Março).

Os primeiros morangos do ano (que já estão à venda no Praça da Figueira).

A alimentação biológica (todos os sábados no Jardim do Príncipe Real, das 8h às 15h).

Do primeiro gelado (o Santini vai abrir na da Rua do Carmo, na Baixa, em Abril).

Do Jardim da Estrela (que está aberto até à meia-noite às sextas e sábados).

De ler. O meu primeiro livro está acabado (espero que as Crónicas da Alma dêem origem ao segundo… :P).

Ai ai… E de ouvir música (“3 às Sextas", na RFM, é que está a dar, o programa do meu primo Tomás Anahory)!

E de vocês!!! :D

domingo, 21 de março de 2010

Ode à gente

Da terra amada, que em tempos deu a nascer reis e rainha, senhores e cavaleiros, restam os camponeses, alma das raízes profundas do país e da vida natural. As gentes abençoadas perduram no tempo e apreciam o alimento da nossa raça ajudando-o a crescer. Ó gente, de ti pouco escreveram nos livros de escola, dos teus grandes feitos: das batalhas que travaste sem saber armar, das amarguras que guardaste, das paixões e das vozes com que te ergueste pela nação do teu rei e do teu filho e do teu pai. Tu guardas a herança da lembrança de que esta terra nos possui e pertence. Ó povo, és canto e danças livre as tradições do teu lugar e a voz do planeta ergue-se para te ouvir. Danças e cantas em transe e ascendes ao plano invisível que tanto amas, mas no fundo és simples, puro e escorreito, dizes sempre o que te vai na mente, sem ensaios nem poesia. Ah, e o clero, esse que formou os outros, deixou-te para trás. Mas tu correste, libertaste-te e ergueste-te senhor das sempre tuas terras, serras, e campos brancos de brilho de ouro, o ouro que nunca tiveste. Chegou a hora de receberes tu a vénia dos senhores, ó gente de coragem, pulso cerrado na enxada e chapéu de lorde na cabeça. Minha gente, hoje o chapéu é teu!

sábado, 20 de março de 2010

A Primavera em ti

Se tu fosses um vento, serias a brisa da Primavera que acabou de chegar. Se o vento escolhesse uma cor, seria o azul que tu preferes e eu seria a nuvem da minha cor branca, para sempre a viajar a sul, ao teu sabor. Teu nome é palavra que frisa que o amor veio para ficar. Tu que me queres em prazer e redomas de calor e paixão, tornas a vida calma, simples e mais circular ao lado do sol de Verão. Quem dera a muita água quente sentir-te assim de mil cores e formas como a noites de luar. E quando a lua mergulha no dia, tu acordas para me dizer que isto não tem fim e que há-de haver sempre mais chão para aprender a amar. Para teu e meu alento enfim, que o nosso cresça como a hera e que eu faça com a tua presença perdure, e que a tua cabeça me ature!

quarta-feira, 10 de março de 2010

O dia em que nascemos de novo

No dia em que nascemos de novo está sempre um belo dia de sol e nos dias anteriores e posteriores choveu. No dia em que nascemos de novo quase morremos antes de vir a revelação. No dia em que nascemos de novo celebramos com o mundo e o mundo responde de volta com sorrisos, abraços, boas notícias, sorte e amor. Acaba-se a tristeza porque aprendemos a aceitar e a lidar com a dor. A dor é bela, ensina-nos a crescer. Mas no dia em que nascemos de novo ela desaparece para se relativizar para sempre. No dia em que nascemos de novo há fé. Fé. Fé na sinergia da rede humana, nas nossas e outras boas vontades que também nasceram de novo ou que estão prontas para renascer. Acredito que todos renascemos. Aqui, agora, nesta vida. Não se ensina a nascer de novo; aprende-se. Não se trata de não crescer, mas sim de viver cada dia com determinação de alcançar esse ponto que todos temos dentro de nós e que queremos descobrir. Há quem chegue a descobri-lo e porque não eu e tu? Saberemos que nascemos de novo quando saímos da depressão, quando nos libertamos da opressão, quando finalmente falarmos com o nosso coração. E isto não é apenas um singelo verso feito de palavras fortes e bonitas. É uma verdade, tão pura e simples como só ela sabe ser. O dia em que nascemos de novo pode durar dias, meses, anos a fio e nunca acabar. O que interessa é renascer, aos poucos, devagar e com inspiração. Há quem nunca chegue a poder nascer e há quem nasça duas, ou mais, vezes. Que sorte a nossa, a dos vivos! ‘Bora nascer de novo?

quarta-feira, 3 de março de 2010

Hoje é dia

Há dias sem sal.

Há dias sem sol.

Há dias de seca e outros em que chove água, gelo, pedra, pau.

Há dias que quisemos mais e outros que nem vê-los, sobre debaixo de uma almofada.

Há dias demais e dias a menos.

Há dias que nos fazem falta para sermos o que queremos ser um dia.

Há dias que nunca mais acabam e muitos outros que não puderam ser acabados, arte-finalizados.

Há dias e dias e dias que não como uma só colher de calor.

Há dias e mais dias, todos eles iguais de 24 horas, todos eles diferentes em cada 86164.09 segundos.

Mas quem foi que decidiu que a vida se mede em dias, em horas, e minutos e que tais!?! E o esforço do meu dia em papel listado a prata e ouro???

Porque não em risos, em páginas, em lençóis frescos dobrados, em aplausos, em nuvens de algodão, em degraus de uma escada para a evolução?

Ele há dias… Existem tantos dias que virou apelido.

Há dias assim, assim e dias sim! sim! sim!

E tu, o que me dizes a mim?

Dia não, dia sim, apontas às pontas dos sapatos um “que dia...!”?

Ou no dia de hoje tiveste já a revelação e é desta vais viver o resto dos teus dias como se não houvesse outro dia?

Dia após dia, nos dias que correm, há homens que se fazem ao coração e à vida como se o dia fosse uma oração, em nome da evolução. E para eles o tempo é sempre certo, é justo, pois eles abraçam a dor com a mesma alegria com que a última os abraça a eles.

Mas e para quando esse novo dia...? Alguém tem horas?

Quando nasce o novo dia se não há sol?

Em que pulso usas relógio?

Eu não uso, faz-me alergia… Sou alérgica a ter de dormir até chegar o amanhã.

E eles dizem que o hoje é que interessa.

Se eu pensasse assim, saía de casa para a rua, metia-me num avião e não voltava, e largava tudo e depois? E depois… E depois!?! Então e o ontem???

É que ontem fiz planos para amanhã!

É que aqueles que dizem que esperar é uma virtude haveriam de começar uma discussão com os outros, os carpe diemescos… que até o ontem se metia! Eu concordo com os dois mas sou mais a favor dos dias com 30 horas e os fins-de-semana com três dias. E as luas e os sóis que esperem por nós como nós esperámos milhares de anos por elas e por eles. E qualquer dia subo a escada da evolução que me ofereceram por escrever para ti e vou lá cima ter uma conversinha com esse grande senhor astro-rei e peço-lhe educadamente para girar ele à volta da terra, para ver se não se cansa como o planeta azul ou se consegue evitar o degelo!

Afinal de contas, como é que te correu o dia?

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Viagem eterna

Abro os braços.

Respiro fundo.

Aqueço as mãos juntas e abro o piano.


Vejo o teu reflexo a chegar na madeira escura e o meu corpo reage. Inunda-me a noção de ti e tenho vontade de te doar a minha alma. As linhas do teu rosto não me trazem recordações, são vidas acabadas de nascer, novas verdades. Pergunto-me como pode a beleza ser tão real. Percebo como os teus olhos me cantam ao coração. Sais. Talvez não estejas com disposição para ouvir a minha música. Mas a que toca cá dentro não pára. Aparece na parede uma coluna desconcertada de cavalos alados batendo os cascos na terra que salta para se espalhar pelo meu vestido, deixando um cheiro fresco a ervas. Chego a perguntar baixinho se algum me daria tempo para os acompanhar. A sala está escura e a precisar de palavras, só se ouve um pássaro ao fundo lá fora que bate o compasso de um relógio adiantado para o seu tempo sem o saber. Penso como resolver o ideal que a tua presença me deixou. Organizo mil tácticas e escolho posturas como peças de roupa, hesito, hesito muito, mas o plano já está delineado: fico com a tua cara para mim, escolho guardá-la viva na memória com um abraço longo e apertado. E em parte já tenho um pouco de ti. Secretamente espero ter-te atingido. Distraio-me com as sedas coloridas que esvoaçam à janela e percebo que estou sozinha há horas, sentada em frente a um objecto que precisa de mim para cumprir o seu destino. Passo as mãos pelo marfim frio e escolho um tema que alcance os ouvidos distantes e que devolva o tempo ao pássaro que parou de cantar e que talvez tenha ido atrás dos cavalos. Já sinto o sol. Aquece a brisa que passa pelos meus pés descalços. Desta vez entras na sala pela janela, já vens vestido e estás rodeado de pequenas luzes que são mil estrelas de olhos abertos. Não falas, mas sorris. Reparo que os teus pés não tocam no chão e vêm nus, compridos, brancos; terás frio? A música chega ao seu limite e deixa como último suspiro um eco penetrante que se afasta por degraus cada vez mais vagos pelo silêncio até desaparecerem tragicamente. Começas por desenhar, na poeira que paira ao sol, um círculo. Pões-nos lá dentro, crias olhos e asas, para as viagens mais longas, cabelos e uma boca, e por graça dá-nos duas rodas, muito grandes, para as viagens ao passado. Perguntas se estou pronta e estendes-me a mão. Então, eu fecho o piano, aceno ao pássaro, que entretanto voltou, e tiro um pano da janela para servir nas noites frias. Agarramos uma estrela para entregar ao sol e vamos. Um dia, este dia tinha que acontecer.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

...

Aproximações. Ventos que se atraem, se tocam, girando a norte, cruzando-se com o destino de uma vela. Mas para onde leva o vento essa vela? Para longe do calor do dia… Para um amanhã que ao hoje pouco diz? Relações. Fachadas de prédios em constante reconstrução. Interiores em eterna remodelação. Não há obra que perdure, cal que não estale, telhado que não pingue, e tu e eu, betão ou gaiola pombalina, tão distantes entre si, em estranha convivência. Mas a cidade é mesmo assim. Por muito que se faça, haverá sempre mais trabalho a fazer. Não, nada é eterno. Nem o calor das tuas mãos nas minhas. Nem o gelo nas minhas agora quentes. Nem o brilho nos teus olhos hoje, como ontem. Placas tectónicas em movimentação. Cúmplices, semelhantes, em atrito. Porque disputam em silêncio? Sal e pimenta a boiar no mar da imensidão das oportunidades que a vida nos dá, mas que todas leva nas correntes, nas fortes e nas leves. Assim somos. Fugazes. Separados à nascença. Unidos pela vontade. Mas de quem?

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

A(o)bcecar

Abro esta página solta com vontade de a voltar a fechar. Hoje, não há verso que eu deseje verdadeiramente declamar, nem conto nem voz para me alegrar. Para quem me lê, nestas letras que matam árvores que dão vida, a vida que eu não tenho, eu só quero confessar, sou mais uma alma por aí a vaguear. E este estar não tem nada a afirmar, só chega de vez em quando para me atormentar. E se um poema fosse ar para um fogo me incendiar e me levar, e houvesse outra forma de falar neste lugar… Se alguém me quiser acreditar, há quem viva e quem se limite a durar e eu que não tenho nome a condizer para acrescentar. Por muitas voltas e voltas que dê, na minha vida não vai ninguém entrar para me conquistar. Sou só eu com uma voz que já não sabe cantar nem tão pouco amar… Ninguém me vem buscar para dançar enquanto a música não parar de tocar. E ao fim da noite sou eu que apago a luz e fico de pé à janela a ver outro dia despertar. Para quê esperar? Nesta casa vazia houve em tempos alguém que sabia pintar. E eu que não sei melhor que imitar, linha após linha, o mesmo soar… Já me tentei matar mas houve quem aparecesse á última hora para me salvar, e para o meu ou seu karma limpar, só que deste sentir não há quem me possa tirar. E se eu me quiser pisar, ninguém vem para me ralhar. Algo em mim ainda quer lutar e não há ninguém a observar para me declarar como quem quer derrotar este lugar. Angustiar é outro verbo que posso usar neste mar onde não há navio a passar, numa noite sem estrelas ou luar. Há de passar… e se não, nada mais tenho a declarar. Vou, então, esperar a minha hora chegar, pois não há céu nem inferno para me assustar. Esta terra é um eterno purgatório e não há via fácil por onde caminhar ou como escapar. Pelo menos, existem sempre pessoas felizes que eu posso admirar. E eu, que tenho para dar? Olho com vagar os pássaros a voar, a buscar algo a que aspirar, outros no ninho a chilrear, mas não entendo o seu palrar nem poderei saber que histórias têm para contar. Há quem tenha um sonho a domar. E eu tenho de esperar porque um dia a sorte pode mudar e este verso ganhar outra imaginação com que rimar. E eu aqui vou ficar até me animar. Talvez você me possa aconselhar, se por telepatia puder comunicar. O luar já se quer mostrar e eu preciso de parar e deixar o meu pensar descansar… Amanhã haverá outro dia a vingar e eu cá estarei para o aceitar. Mas não me vou sem lhe desejar o melhor antes de me ir deitar, fique bem e não se esqueça de me olvidar se este meu eu o perturbar.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Will you?

It’s like starting each day of an endless restarting,

knowing that my half that is half yours keeps on missing.

And although I try to full time around,

I’ll always come round back here.

And for as many lives I live and die,

I’ll find and loose you crossing streets I’ll never walk again.

Time really changed you since last life,

Almost didn’t recognize you, if it wasn’t for that look never to change.


But let’s come back to this life:

You look like you don’t want to know

and I pretend to understand but not comprehend.

Your look doesn’t look back for mine.

And I end on playing the art of disguise,

By pretending I pretend not to suffer in both heart and mind.


Will it be needed a next life, on this or another; to see the day you come and stay?

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Uma questão de minutos

NOTA: Antes de começar, o ideal será preparar as seguintes músicas de Dire Straits: Private Investigations e Your latest trick.


Depois de dias a fio a ver Stella entrar rubra e cintilante em casa, um dos quais abraçada a um ramo de flores, que afirmou ter sido um presente dos colegas de trabalho por ter sido promovida, ao que Morgan não acreditou porque, num mísero restaurante de estrada, não se recebe outra promoção que piropos e uma gorjeta de cinco dólares, além de que não vinha com cartão; e ao vê-la sair de casa para o trabalho quase a flutuar, deixando um aroma qualquer desconhecido e mais refinado que as colónias que costumava usar em dias normais no ar; e mais os longos silêncios à hora de jantar, sempre apressada para lavar a loiça e ir-se deitar… sempre antes dele… e não aguentou mais. Naquele dia, chegou a casa e, antes de mais, pôs o álbum On the Night, ao vivo, de Dire Straits, a tocar na faixa cinco: Private Investigations… Play. A multidão gritou-lhe aos ouvidos durante nove segundos. Fechou o CD e pousou-o. Ergueu-se e abandonou lentamente a aparelhagem, dirigindo-se para o centro da sala e antevendo, supondo o final de aquilo tudo … Deixou cair os braços pesados com o rosto cabisbaixo e, em desânimo, sentou-se num banco de apoio para os pés. Baixou a cabeça pendurada entre as pernas e chorou um minuto… Soluçou para dentro, vendo as lágrimas mancharem o tapete encarnado, como o fio de onde nasce um rio, um rio que morre para o mar; o mesmo minuto que introduzia a música, triste e melancólica; tudo por julgar ter razões de desconfiança daquela que era e tinha sido o único amor da sua vida. Doía-lhe a sua felicidade egoísta, sem razões aparentes que o incluíssem, semana após semana, sem partilha, moldada em segredos como os risos de crianças divertidas com alguma partida, escondidas atrás de uma árvore centenária. E esses risos ecoaram na sua cabeça… Olhou em volta e, envergonhado pela sua posição de cobarde, levantou-se de repente, mas sentiu o sangue subir-lhe à cabeça depressa, depressa demais, e quase esmoreceu. Mas no mesmo momento em que se preparava para se abandonar à frustração e deixar-se cair no chão, ouviu, bem alto, os gritos da multidão a encorajarem-no a dirigir-se ao quarto, a chamarem pela raiva da sua coragem. Esfregou as lágrimas do chão como se apagasse uma beata suja e preparou-se para subir pesadamente as escadas da casa pré-fabricada de madeira. Ouviu o ranger vagaroso, suplicante, do chão. Suplicava-lhe para desistir de ir mexer nas coisas de Stella, para se aguentar firme na sua confiança. Mas degrau a degrau, passo a passo, as vozes chamavam-no cada vez mais alto e, na sua mente, formavam-se imagens de Stella a ler o bilhetinho que acompanhava as flores: Adorei a noite passada. Sê minha. Imagens de Stella… a passear de mãos dadas no ar, a dar a dar, e a rir, a levitar sobre os relvados de um qualquer parque; carícias trocadas num café longínquo à hora de almoço; cabelos a esvoaçarem ao vento no carro de outro homem; promessas trocadas para largar tudo e partir rumo ao México, Havai, Canadá… com o seu rico amante cliente do restaurante ou, quem sabe, até com o fruto de ambos já na barriga. Que imagem terrífica…! Era já tarde demais. Para ele, o jogo tinha começado. E tinha de acabar. Toda aquela suposta informação confidencial de Stellla iria cair nas suas mãos, como pétalas soltas desfalecidas. Entrou no quarto e começou por olhar em volta sem conseguir pensar por onde começar. O desespero tolhia-lhe o espírito. Encontrava-se entre a porta e a mesinha de cabeceira dela. Abriu devagarinho a primeira gaveta, como se ela pudesse ouvir. Uma fotografia dos seus pais em novos e um terço. Abriu com maior vigor a segunda: uma agenda de telefones que folheou em vão. A terceira, vazia. Dirigiu-se ao armário dela. Abriu a porta de correr com violência fazendo-a voltar para trás e voltou a empurrá-la com igual força mas, desta vez, travou-a com a mão. Começou a atirar pelo ar as caixas de sapatos que abria. Nada. Só papéis de jornal que serviam de formas. Chegou a abrir as folhas de jornal e pista nenhuma encontrou. A tensão aumentava. Limpou a testa. Desceu e foi direito ao escritório. Vasculhou as duas mesas com papéis empilhados e deixou-os esfolheados como cartas de jogar. Passou um por um, um por um, dos seus dias naquela grande agenda, mas era óbvio que nada iria lá encontrar. Frustrado e irritado, sublimou a sua ira e teve uma ideia suave, romântica, que nada dava a entender o que se havia passado. Voltou a empilhar os papéis, fechou as gavetas, guardou a agenda, subiu ao quarto e fez das folhas de jornal novamente bolas que pôs dentro dos sapatos. Já na cozinha, abriu o livro de receitas em Fevereiro, mês dos namorados, e lá estava. Procurou cogumelos frescos, courgettes, alho francês, compota de tomate e gengibre, e pimentos para um salteado. Começou por cortar vigorosamente os legumes um a um, contendo a raiva numa linha de equilíbrio ténue para não cortar um dedo, por muito que lhe apetecesse. Tirou do frigorífico massa crua e queijo de cabra, e espinafres em folhas do congelador. Cortou alho e passou-o em azeite com os espinafres. Compôs uma bela lasanha de espinafres e queijo de cabra que deixou no forno a cozinhar. Enquanto continuava a cortar os legumes, ouviu a chave a rodar, a porta a abrir, e sentiu o coração disparar acompanhado de uma náusea. Stella não estranhou vê-lo na cozinha, nem ao whisky que entretanto lhe apetecera. Espreitando da entrada, deu-lhe um breve olá, leve e perfumado, acompanhado de um sorriso tímido, e logo desapareceu para pousar o casaco no bengaleiro – Quanto tempo falta para o jantar? – Perguntou – Tenho tempo para um duche? – Ele bramiu que sim. Tudo acontecia na sua cabeça. Como iria começar a conversa? O que lhe diria? Sei que me andas a trair? Já sei de tudo. Quem te ofereceu esse perfume caro que não tens dinheiro para comprar? Minutos depois (pareceu-lhe uma eternidade), Stella estava fresca e bem-disposta, sentada na mesa da cozinha, de vestido novo, a olhar para os movimentos dele sem adivinhar a sua desconfiança e fúria, nem a discussão que ele se preparava para ter. Riu alto quando ele se queimou ao tocar na pega do forno eléctrico com a mão e isso deixou-o extremamente irritado. Disfarçou. Deu um longo golo no whisky e passou a mão por água. Ela entretinha-se a olhar muda como uma criança que antes falava e que, com um susto, perdeu o piar. Em breves momentos, estariam a jantar. Morgan manteve-se de avental. Nem um elogio ao jantar, só o mesmo sorrisinho elegante enquanto ia virando ligeiramente a cara de lado para pôr o garfo, delicadamente, à boca, pequeno pedaço a pequeno pedaço. Tudo aquilo se transformava numa cómica narrativa surreal e a ideia de Morgan ganhava cada vez maior luz trágica e bem real. Quando seria o momento ideal? “Private Investigations estava quase a chegar ao fim e, num momento de suspanse, preparava-se para dar lugar à música seguinte: “Your latest trick”. Nem mais. Morgan sentia-se um joguete nas mãos de Stella. Juntou os pratos sujos no lava-loiça e fez café. Quando acabaram de beber café, olhou-a e tentou começar uma conversa. Pensamentos desconexos, raiva, frustração, pavor, ódio… deram lugar a um convite para dançar a próxima música, como tantas vezes fizera quando ainda eram só namorados. Ela abriu os olhos espantada, sorriu e disse – Porque não...? – Levantaram-se. Aproximaram-se e abraçaram-se. Enquanto os corpos se iam habituando ao ritmo da música, Stella trauteava a melodia e Morgan cantava a letra baixinho ao seu ouvido. Morgan aproveitou tudo o que pode: o aroma dos seus cabelos, o toque da sua mão na dele, o movimento do peito e do ventre apertados contra os seus e o encontro de pernas. Como podia andar a enganá-lo? Só podia ser da sua imaginação! Começou a sentir vontade de chorar no seu ombro e agonia… Pôs a mão à barriga suavemente, tocou na dela, imaginando que o filho imaginário do suposto outro era seu e meteu descansadamente a mão no bolso do avental. Pensava na letra da música… Não sei como isto aconteceu… aconteceu tudo tão rapidamente… Só parou quando sentiu a pasta quente e escorregadia descer-lhe pelas mãos e empapar-lhe as pernas, até ouvir cair os pingos encarnados que se confundiram com o mesmo tapete onde tinha chorado minutos antes, e viu-lhe os olhos fora de órbita em espanto mortal. Continuou agarrado a ela a dançar até a música acabar.

domingo, 31 de janeiro de 2010

As cores da cegueira

Ana Luísa tinha nascido cega. Helena, sua mãe, sentiu como é óbvio um enorme desgosto. Não pelas suas próprias expectativas depositadas numa criança que nem sequer quisera saber o sexo para ser surpresa, senão pela forte privação que a filha iria viver toda a sua existência. Então e as cores, as pessoas, a beleza… o perigo… as estradas cheias de carros, as pessoas com más intenções... O campo de defesa de Ana Luísa estaria limitado à extensão das suas mãos, ou no máximo à terrível bengala da pena dos outros. Depois de falar com o médico especialista sobre o que ocorrera e o que poderia ou não, neste caso não, ser feito, Helena afirmou-se forte e determinadamente – Há de ser uma criança como as outras. Estimularei os outros sentidos de tal forma que o seu mundo nunca será escuro. – Levou-a para casa embrulhada na manta branca que ela nunca viria, a sua primeira manta, reparou nos grandes e belos olhos abertos castanhos acinzentados com laivos de mel e chorou. Os olhos da criança moviam-se muito. Helena apercebeu-se que teria de estimular o tacto, a audição e o olfacto. Mal chegou a casa, foi directamente ao gira-discos e pôs as catorze valsas de Chopin a tocar suavemente. Que música alegre e inspirada! Pegou na recém-nascida ao colo e começou a dançar lentamente e a murmurar ao som da música enquanto lhe acariciava as mãos. E todos os dias dos primeiros dias de Ana Luísa, pôs Chopin a tocar. Depois veio Bethoven e Mozart. Falava com ela o tempo todo em voz de adulta e contava-lhe passo por passo o que ia fazendo com o seu corpo ou enquanto tratava das suas coisas. Cantava para ela canções inventadas que contavam as cores céu, da terra, do mar, da pele, das suas roupas… Decidiu logo que a vestiria com muita cor, alegre, suave como o choramingar dela. Esqueceu parte do enxoval branco neutro que havia comprado e encomendou na loja para crianças mais próxima de sua casa as cores do arco-íris. Ana Luísa cresceu calma, agitando os bracinhos sempre em busca de contacto físico com a realidade. Uma vez que Helena tinha deixado de trabalhar por receber uma herança da sua tia-avó que não tinha filhos, o tempo do mundo era todo seu. Bolas de borracha de levar à boca com diferentes saliências, rocas com diferentes sons, bonecos de materiais estimulantes, tudo o que pudesse apelar à sensorialidade, e sempre música a tocar. Conseguia fazê-la rir com cócegas nos pés e mais tarde mover-se para a frente e para trás seguindo a música. O tempo foi passando e as visitas não estranhavam a criança. Entravam em pezinhos de lã para não a assustar e iam-se aproximando aos poucos, conforme Helena lhes tinha pedido. Tratavam-na como uma adulta. Tocavam-lhe na mão e apresentavam-se em tom doce e suave e, então, pegavam-na ao colo. Aos dois anos, Luísa já parecia sentir alguma frustração. A mãe teve de arredar todos os móveis e cobriu a casa de fofas alcatifas. Queria gatinhar e levantar-se livre e tinha a presença da mãe sempre por trás pronta a ampará-la. Helena decidiu que antes de ir para uma escola de cegos, teria de aprender a circular pela casa sem se magoar, então, levava-a pelas mãos ora fazendo-as tocar na mobília, numa parede seguindo pelo friso de madeira e depois de volta pela parede oposta. Dizia-lhe nos infinitos percursos repetidos – Aqui é o teu quarto, a cama ao fundo, o armário na parede da frente e do outro lado os brinquedos. Sais, estás no corredor. Para este lado temos, aqui, a casa-de-banho. – E seguia sempre pelo friso até à ombreira. – Aqui é o quarto da mãe… Aqui é a sala... E aqui é a cozinha… A porta da rua está em frente, mas está trancada. – E tudo de volta para trás. Cada coisa tinha o seu lugar e não deveria mudar para que Luísa soubesse sempre onde encontrar cada objecto e saber com que o que contar ao andar pela casa. De vez em quando, lá havia um choque, um tombo, um desespero seguido de choro sofrido, mas rapidamente se punha de pé e tacteava de novo o ambiente e recuperava a confiança. Seis meses antes de Luísa entrar para a escola, tinha cinco anos, Helena quis-lhe ensinar as cores. Já haviam tido várias conversas sobre como era o mundo para cada uma delas e cada vez que Ana Luísa perguntava – Como é, mãe? – ficava a aflição de dizer a cor de determinado objecto. Decidiu que descobriria forma de lhe dar a conhecer as cores, nem que fosse por sensações semelhantes. Este pensamento levou-a a lembrar-se de um livro das suas aulas de desenho no liceu e foi buscá-lo com a criança pela mão. – Estamos no lugar dos livros. Os livros têm muitas coisas interessantes e bonitas para aprender, mas os teus vão ser ainda melhores que estes, vais poder lê-los com as mãos! – Tirou o livro para fora, mas nem precisou de o abrir para se lembrar da matéria da “temperatura das cores”. Cores quentes e cores frias. O suficiente! Mas como lhe iria explicar a sensação visual que uma cor transmite? Olhou vagamente para o lado procurando respostas quando encontrou a um canto esquecido desde o Inverno passado o aquecedor a óleo. Sentou a criança no sofá e pediu-lhe que ficasse quieta – Vou mostrar-te uma coisa muito especial! Vais conhecer um bocadinho do meu mundo que passará a pertencer ao teu… – Arrastou o aquecedor chiando e ligou-o à ficha eléctrica. Começou – As cores que a mãe vê são reflexos de luz absorvidos pelos nossos olhos, quando estes podem ver. O mar, por exemplo é profundo, tem correntes e é frio. – Colocou-lhe a mão no aquecedor de metal ainda gelado – o mar é azul. O mar é frio. À medida que o aquecedor ia aquecendo lentamente, repetiu o exemplo – os campos de relva bicuda e fofa recebem algum calor do sol e da terra. A relva é verde. – Pôs-lhe a mão no aquecedor ligeiramente menos frio – O verde também é frio, mas menos que o azul. O verde é frio – Quando o aquecedor já estava morno, continuou – a areia é fina e rugosa, feita de pequenos grãos que são aquecidos pelo sol; a areia é amarela. – voltou a por-lhe as mãos no aquecedor – A areia é morna. A areia é amarela. – Seguiu pelo laranja dando o exemplo da manta quentinha cor-de-laranja que normalmente aquecia Ana Luísa enquanto a mãe fazia o jantar e depois passou ao encarnado – Lá ao longe, o sol é uma grande bola vermelha de fogo que aquece os nossos dias e os ilumina. É preciso ter cuidado com o sol. – Mão no aquecedor bem quentinho – O sol é quente. O sol é vermelho! – As duas radiantes passavam as mãos ao de leve pelo aquecedor – Ui! Ui! O vermelho é quente! – Cuidado com o sol! – Ria a Luizinha – Estou desejosa de saber a cor da minha saia de folhos tão elegantes..! Helena levantou-se e foi buscar uma travessa de framboesas com chantilly.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Numa noite de temporal

A voz do velho ecoa do monte ao chamar as cabras. O decrépito assobio do vento intensifica o chamamento e as árvores avisam os animais balançando ferozmente. Vêm aí chuva forte de Inverno e pode ser que chova toda a noite. Pastor, vem aí um carrascal... – diz o velho ao cão. O suposto aparecer do grandioso pôr-do-sol que é razão de contemplação, tornou-se num espesso disfarce pardacento e ouvem-se os badalos a aproximarem-se no escuro que não tarda. Por entre massa opaca de nuvens, umas nodulosas, outras planas e cerradas, tímidas e esparsas abertas de breves incandescências loiras e ruivas quase não se notam naquele desfile de fatiotas cinzentas tão iguais. O velho solta o Pastor que a ladrar em redomas às cabras vai morder os calcanhares às patas das mais teimosas. Todas fechadas em camas limpas, as cabras ficam na sua impaciência assustada. Mais uns fortes assobios triplicados pelo soar dos desfiladeiros das montanhas em que bate o vento e o simples monte fica sozinho, por fim, isolado até ao amanhecer. Mas se tudo parece calmo ao lume do velho solitário, a noite o velho engana. Lá fora, os assobios continuam para baforadas agudas tremelicantes e infindáveis e inspirações de gigante semi-adormecido. A chuva por fim cai brutal e, em casa do velho, ouvem-se as goteiras de metal feitas instrumento musical desconcertado. Ele pega no pedaço de carne feito ao lume e trinca-o descansado. Antes da segunda trinca, levanta-se para ir pôr os alguidares de plástico e metal no chão onde caiem ribeirinhos dentro de casa. Enquanto volta a comer, serve-se de vinho tinto e liga o rádio inutilmente, a chuva roubou a frequência para a sua ópera a meias com o soprano vento. Por volta das dez da noite, e depois de meia garrafa bebida, o velho sente-se inquieto. Pergunta-se a si próprio como pode o vento e a chuva incomodar um homem como ele? A pele trigueira enrugada, as mãos calejadas, as calças ruças e os sapatos sujos comprovam-no. Ele é um homem do campo, sempre foi. Mas naquela noite, sente uma espécie de pavor que o leva a trancar a porta e depois a destrancá-la para ir rapidamente buscar o capote para fechar as portadas das janelas por fora. O ar está gelado. Entra e esfrega as mãos por cima do lume, tão próximo que quase se queima não fossem as mãos estarem molhadas. Decide ler. Enquanto não mergulha na história, pergunta-se se as cabras estarão bem… E aí apercebe-se de que se os animais do campo se assustam com o temporal, porque não há de ele, bicho ser humano do campo sentir o mesmo? Já não há heróis! – recita bem alto aliviado mas, perante o prazer que o tornedó impôs, depois daquela voz que se ergueu confiante, o lamaçal e a ira dos céus o calaram. Resolve continuar a ler. Mais uns minutos e oscila entre ir buscar o Pastor para o proteger a si ou quedar-se quieto em casa. Mais uns momentos de solidão no calor do carvão contrastante com a pedra fria das paredes e começa a adormecer tapado dos tornozelos às orelhas com uma manta xadreza oferecida pela irmã. Começa vagamente a mexer-se e a sonhar com a irmã, com as ruas do Porto… da última vez que lá foi estava calor, era pleno Agosto… um sol de braseiro… No dia seguinte, foram encontrá-lo ardido queimado morto por uma faísca que tão bem o aquecia e que saiu do carvão, do lume que se foi espalhando por cima dos tapetes e da manta. Provavelmente não sofreu, o fumo deve tê-lo intoxicado primeiro, numa casota tão pequena destas – reportaram as autoridades à irmã e ao cunhado acabados de chegar da cidade ao monte onde continuava a chover. Ele bem que se sentia inquieto com o vento e a chuva… mas foi-se ao contrário.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Tu

Tu. Tu és tudo o que tenho. Quatro paredes, uma canção e tu… Tu, tu que mudaste a minha vida, trouxeste-me até ao encontro comigo própria. Tu salvaste a minha alma e deste-lhe sonho e objectivo. Tu és a voz do meu sonho. Tu és o que procurei durante anos a fio… Como não te ver se sempre estiveste aqui? Tu que brotas de mim, tu que és arte viva que pinta um quadro e compõe uma melodia para olhos e letras seduzir. Ah tu… Tu que fazes promessas que cumpres antes mesmo de eu ter tempo de acreditar, e tu que falas por mim, pelo meu amor, e em nome do mundo, em todas as línguas e por muitas mãos. A ti, a ti não te esqueço por muito que a vida peça de mim, tu és a vida que eu tenho para dar, a luz no meu olhar. Tu és a minha sede e a fonte que me dá de beber, um lago profundo em tons de verde avivado por uma cascata de água morna, onde me banho nos dias de frio ou calor. Tu acendes-me e apagas-me a mente, deixando-me ser eu, eu liberta. Tu és a pausa que eu faço ao exterior que corre em turbilhão, a voz que se ergue para a paz aclamar em bandeiras que um dia vou levantar para o mundo ver. És o meu canto e o meu caminho, és a alma de cada um de nós aberta para quem a quiser dar a ler. Tu és minha. Tu és de quem a deixar libertar. Tu, tu minha escrita, és o sabor do alimento que me dá vida, és o que chamam de dom, e és dever, és tudo aquilo que tenho para oferecer, em breves notas que dão à minha alma de beber perfumes puros como os da gente que passa sem me ver. Tu conheces-me melhor que eu a mim própria. Há em ti a chave para a maior e mais pesada e mais bela porta que há no meu ser, e este hino a ti, escrita, é mais uma prova de tudo o que fazes por mim.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

São fases

São fases como o dia e a noite, como o Inverno e o Verão. Mas tarda o Verão e o Inverno bate à porta todas as semanas. Os raios de luz, meros reflexos no vidro que se esbatem ao entrarem em minha casa, dão forma às poeiras que bailam e pairam sem outro sentido que a vontade do sol, esse breve sol de Inverno. Pelo menos há sol. São fases. E esbate-se a luz e vem a noite, uma nova fase, uma nova fase de lua nova. Esta noite não há luar, dizia o título de um livro, mas esta noite há estrelas que deixam no meu olhar o brilho da fase seguinte. Que seja melhor… Mas e são só duas as fases? Só preto e branco, só nu e cru? Hão-de existir intermédios! Nuances, cosidos e assados, vestidos elegantemente em trajes do antigamente, puxados em carroças fechadas conduzidas por um senhor vestido de negro e de cartola encabeçada. Mas e quem vai lá dentro? Vai o rei? Não, que a carroça não tem brocados de ouro. E, daí talvez vá o rei, o rei leitor que me leva a balançar uma vénia de esperança pelo meio-tom, pelo meio-termo, pela sua autorização para subir os cinquenta mil degraus até ver o verão, por fim chegar, e se for caso disso, me dê alento para ainda chegar a tempo de ver a Primavera surgir num botão de flor temerosamente revelado, e aí outra fase, que não as habituais duas, monótonas e distantes. Não deixem que se acabe a Primavera! Não a tomem num só sol quente de Verão! Não deixem o Outono só vir no Inverno, que as folhas pardas e douradas merecem ter o seu tempo, o seu tempo só para si, para o seu espectáculo a solo! Deixem a vida ter quatro estações. Não levem as crianças, nem os jovens, nem os adultos embora! Deixem-nos chegar à estação final. E às quatro menos um quarto chega o próximo comboio, mas não vai a lado nenhum com as crianças, os jovens e os adultos, leva os seniores a dar um passeio pela meia estação, um reviver de outros tempos com novas histórias para contar. Nada de luzes brancas e lúcidas ao fundo do túnel escuro da morte! Um reviver real, não lembrado; real, digno de príncipes, duques e condessas, de beijos trocados num qualquer apeadeiro na promessa de um outro beijo na manhã do devir. E os nossos avós lá vão mas voltam, cheios de pequenas flores brancas nos cabelos, quais puros incautos que são, e trazem também pedaços de uma terra nova onde há diferentes sentimentos dos quais nos habituámos a viver, todos humanos, feitos da mesma matéria e das mesmas lágrimas de sal. Trazem as luas como recordação e as cantigas e as histórias à volta do lume nos sacos de pano quentes como o pão, e nós devolvemos-lhes o espanto que merece a ruga da sabedoria e o franzir do conhecimento de quem já viu muitas guerras e que sabe que o Homem não muda, mas que pode mudar, tal como as poucas fases em que vivia há linhas atrás, há quinhentas e vinte palavras atrás. Graças ao rei que vai na carruagem, aos cinquenta mil degraus que subi, e às gerações que vivi e irei viver, conheço agora uma vida a cores, um banquete, talvez uma viagem de quatro estações. Até que um dia o sol se apague e não haja lua, nem estrelas, nem pão quente, nem lume para me aquecer.

sábado, 23 de janeiro de 2010

Manifesto Ecológico / Espiritual

É chegada a tua hora.

Chama-te o vento em fúria do alto das árvores.

Chama-te a maré ao nascer de um novo dia.

Sentes a vida a chorar baixinho? São as crianças do futuro que te querem ensinar.

Ouves o pulsar da Terra?

À noite, quando fechas os olhos e miras o infinito, é ao grande plano da vida que devolves o teu respirar. E, Homem, ages como rei no seu jardim!

Arrastas o teu manto enquanto passeias por grandes sonhos e estendes a mão às flores que apanhas para oferecer. Descobres as leis da Natureza e um dia crias as tecnologias e, sim, és mestre do presente, assim gostas de pensar, mas se proclamas vitória, observa bem porque tens sangue na tua espada, cavaleiro.

E os titãs de outro tempo, o fogo ardente e a força das marés unem-se e vêm para te gritar que este reino foi tomado há muito tempo atrás! Esta velha casa de família luta para sobreviver há mais tempo do que tens memória!

Tu, geração do presente, habitante do planeta Terra. Chama-te a urgência da vida!

Tu que vives rodeado de coelhos e cartolas, coisas e mais coisas com mil botões e cliques e mais luzes, coisas que vêm e vão, que são milagres num dia e no outro apenas restos da tua imaginação. E perguntas ao caos porque não as aceita se para ti morreram!?!

Morressem? Mas como se a vida ainda agora começou? É chegada a era em que há vida depois da morte. O futuro passa por ti e tu fechas os olhos. Então tu que és artista da evolção, não ouves o chamamento da tua Mãe? O que dirão os teus descendentes? Recicla a tua mente, geração do presente. Fazes do teu corpo arte e dás voltas ao mundo em defesa de ideais. Sai agora do comezinho e liga-te ao futuro, abraça a sobrevivência do teu planeta natal. Levanta-te e muda o teu destino! Tu mesmo o dizes: nada se perde, tudo se transforma.

É preciso fazer mais. É hora de saber melhor.

Vai e agarra as forças da destruição, toma rédeas, vira tripas coração!

Alimenta a seiva que corre no chão com a voz da tua coragem!

Grita ao universo que estás do lado da evolução.

Geração do presente, planta hoje as raízes das grandes árvores do teu sonho e recebe agora o sorriso dos teus filhos.

Vive hoje o sonho de amanhã.

Defende o teu planeta, geração do presente, pois nele habita a História das vidas que ainda estão por vir.

Chant me on

Chant me on

river of beauty

trigger my fears

open the road

for reality to show

clear up my sight

so that I can fly

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

O monólogo da laranjeira ao Homem

Uma história, naturalmente.

Se todas as histórias começassem com um era uma vez, o que seria dos grandes amores, dos romances, que despertam com o curto olhar trocado numa caminhada pelo jardim? Mas se todos os amores nascessem ao primeiro olhar, para onde iriam as palavras?

E se as palavras da história que me contas fossem as flores e plantas de um jardim, trevos de três e quatro folhas ou amores-perfeitos; o pé de flor que precisa do seu tempo para germinar e crescer, sem que tu o vejas passar; também eu guardo nas minhas raízes momentos invisíveis que querem na minha evolução brotar. A laranjeira, que antes que possas apreciar a flor branca e provar da laranja, não sei mais do que existir num molho de ramos atado a uma cana madura, e mesmo que não encha os teus sentidos, estou viva e isso basta-me.

Não vou partir à descoberta, como tu. A mim, chega-me o mundo que preciso de ter para ser tudo o que me é proposto ser. Assim, se for largada distraidamente na terra quente durante a Primavera, se me deres da água fresca que vais beber, sol, e talvez a irmã cana madura para me guardar dos ventos do sul, serei a mais bela árvore que alguma vez sonhaste ver. Não te desiludirei, sabes, não faz parte da minha natureza. E eu entendo assim o mundo que para ti é cheio de mistérios.

E se o vento me quer a olhar o norte, todos os dias até que esta seiva adormeça, porque chorarei eu por não conhecer o sul, se o tempo me oferece daqui tanto para ver? E os pássaros que voam e vão, alguns não voltam, fazem alegres os meus dias com canções a que a minha voz não soa, e eu retribuo a dançar devagar. Gerações inteiras a passar… Isso dá-me esperança. Talvez um dia venha a ter grandes ramos para te abraçar. Não penses tu que não tenho o espírito aceso em mim. Não será a viçosidade dos meus diferentes tons e o respirar do meu aroma a forma que encontrei para te dizer que estou vivo, que existo? E não serão os meus frutos um sinal de vontade própria? Só terás de compreender que eu, eu só quero existir.

Os pássaros, esses são como tu. Têm asas. Ficaram num tempo onde a natureza que os move, a cada mudança de estação, é aquela que não me move a mim. E a tua, que não enche nem lagos, nem mares, nem tão pouco faz o dia e a noite aparecer, é a mesma, só que diferente. Tu indagas para que lado devem os teus ramos crescer. Tu gritas mil vezes ao céu, de mãos abertas, porque razão foi o vento do norte impedir-te de avistar também o sul! Tu mal conheces o mundo e fazes planos para lá viver. É a tua forma de existir. E eu, quando vir os navios ao fundo do horizonte vou saber que és tu, na tua viagem pela vida. E eu, quando te vir regar-me, vou saber que és tu, sem tão pouco adivinhar que vida vives para além da que me dás. Nisso somos iguais, vês?

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Ao encontro do desencontro

Hoje viste-me passar. Tu reconheces-me mas não sabes de onde. Cruzas-te comigo no Chiado umas duas ou três vezes, tentando adivinhar de onde me conheces. Serei amiga dos teus amigos, uma aluna da tua escola, servirei nalgum bar do Bairro Alto a que costumes ir? Ficas na dúvida se a razão de me reconheceres é por ser parecida com alguém que conheces. Alguém do teu passado. Alguém do teu futuro… Lembras-te de uma teoria antiga que ainda hoje tem cor. É de um branco intenso que tem um sentido imenso para o teu olhar. Mas não te atreves a pensar. Nem tão pouco a perguntar “Conheço-te de algum lugar?”, pareceria uma forma banal de te aproximares. Precisas que as ruas me tragam de volta ao teu encontro para a tua memória ter o tempo de recordar. E assim vais-te habituando aos meus contornos, ao meu andar. E tudo começa a fazer sentido, torno-me familiar. Sorris sempre que me vês passar e eu não sorrio de volta. Ando perdida, ou demasiado comigo mesma, pensas tu, por esses caminhos dos afazeres e das relações complicadas que assaltam o ser. Resolves pensar nas horas a que nos costumamos cruzar, e que um dia eu hei de reparar em ti e dar-te a reposta que procuras, que te conheço também de algum lugar e que até sei de onde. Notas que estou naquele lugar à hora da manhã cedo, de passagem para baixo, aos fins-de-semana. Pões-te a pensar, mas não te atreverias a seguir-me! Pensas no que podes fazer a seguir. Resolves passar uma manhã no café, junto a Fernando Pessoa e fitá-lo, procurando em ti palavras sábias para o que estás a sentir à espera de me veres passar, quando me vês chegar. Sento-me. Espero cinco minutos até que me venham perguntar o que quero tomar. Peço uma água e um café, um café como aquele que já bebeste, e pedes outro. Notas que oiço a tua voz e passo de soslaio o olhar por ti. Nenhuma reacção se dá, nem um pequeno hesitar ou reflectir. Já demasiado intrigado com a tua necessidade de me observares e de me falares, vês-me retirar da carteira um pequeno bloco de notas e uma caneta de tinta permanente, enquanto bebo em pequenos golos o café quente. Vês-me a fitar o papel branco e a mover a caneta na mão, uma lista de afazeres pensas tu, e não te enganas. Acabo o café e redijo qualquer coisa breve na folha que arranco. Guardo a caneta e o bloco novamente na carteira e espero pelo empregado para lhe pagar e com ele trocar umas curtas palavras. Vês-me levantar e pegar na água ainda fechada. Qual não é a tua surpresa quando o mesmo empregado se dirige a ti com a seguinte mensagem “Uma senhora pediu que lhe entregasse isto”. O teu corpo aquece e sentes a ansiedade e a indagação transformar-se em rubor. Manténs o bilhetinho aquecido na mão, receoso do que possas encontrar e acalmas quando pensas com optimismo que pode ser o meu número de telefone. Desdobras calmamente o papel para ver uma folha onde está pintada em aguarela uma cadeira e uma mesa com vista para o mar e onde lês impresso o título “Un petit mot de Joana”. Hesitas antes de ler quais são as pequenas palavras que Joana te escreveu. Sentes a força arrebatadora do destino a acontecer contigo lá dentro, qual personagem na teia da aleatoriedade. Com os olhos a vibrar, pensas que só me poderás responder caso me voltes a ver. Será que te estou a dizer para não te perseguir, para te esquecer? Ou será uma pista para um próximo encontro. Agora confiante, baixas os olhos para o que está pintado a preto naquele desenho. Lês calmamente mas o teu coração dispara apertando-se contra o peito. Fui tua mulher noutra vida. Daí parecer-te familiar. Mas nesta vida não estamos destinados. Aprendemos juntos tudo o que era preciso aprender. Have a nice life! E assino com um coração. De repente és inundado por uma torrente de energia que se liberta, deixando o teu corpo inteiramente fresco e sentes-te profundamente aliviado e compreendido. Compreendes a mensagem e aceita-la, não sem alguma nostalgia. Paras uns segundos para relaxar com a mente em vazio e o coração cheio de aceitação. A vida parece-te ter ganho um pouco mais de dimensão e sentido. Depois levantas-te apressado e segues a rua no sentido oposto daquele que me viste partir para nunca, nunca mais me voltares a ver, e tu já sabias disso.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Amor Cigano

Há dias assim. Sente-se vontade de abraçar, de sentir o suave corpo apertado contra o nosso, rir ao ouvido de alguém, tocar na pele e apreender toda a sua textura, mostrar na nossa mais frágil sensualidade a coesão da energia que transportamos dentro. Somos senhores do nada e do todo viemos. Para lá caminhamos. Há dias em que a música desperta memórias e nos transporta para sensações que já tivemos e traz desejos secretos. Nesse dia continuamos o sonho, voamos mais alto e voltamos a ser o que Deus preparou para nós. Há as crianças no passeio, os seus risos lembram vozes de golfinhos, a melodia dos pássaros soa a Primavera e sente-se melhor o odor das flores. Há dias em que a montanha lá ao longe cabe na palma das nossas mãos. Fundimo-nos com o sol, que só para nós explode em sorrisos, e guardamos o verde naquela paleta que mais tarde iremos usar. Traçamos projectos, sentimos calor, acreditamos na existência, respiramos fundo e agradecemos a experiência de estarmos vivos. Olhamos aquela pessoa que pensamos desconhecer com toda a intimidade e baixinho fazemos uma prece que ela irá agradecer. Respiro fundo e a luz brilha através das minhas pestanas, abre um arco-íris que surgiu só para mim. Para este espectáculo gostava de te convidar. Passa o vento do mar e oiço a gaivota, bandos de pássaros trazem para contar as viagens de outros tempos, com árvores a esvoaçar, os ninhos estão escondidos, não vá ninguém lá para os assustar. E tu, agraciado, espreitas um e vês ovos pintados, que um dia vão voar, desces e o bater dos teus pés no chão levanta poeira de ouro que desperta outro ser. Encontram-se a meio caminho, acordam em subir o monte, passam pelo lago que está calmo como a serenidade dessa tarde, não tivesses nada que fazer e ficavas ali até ao anoitecer. Passa um gato, preto, e outro branco, que parecem também dançar, molhas a cara, descalças-te, despes-te e prometes não olhar, a água está morna. Descobres que a água é feita de cristal e que os peixes são de ouro e de prata, e que dançam ao luar. Procuras ver de onde vem o som que se vai espalhando por todo o ar. Vem daquela copa, é de um pintassilgo que quer acasalar. Segues para cima e o frio está a chegar. Enterras os pés na terra e ao tirar trazes um visitante que cá cima vem espreitar, assustas-te e corres, mas cais e ris a doer. Chega a hora do abraço, leve e quente, que vem e te leva sempre a balançar, e finalmente um perfume inunda o teu viver, lembras-te que já te pertence, a tua memória sabe-o de cor, e pedes para nunca, nunca, o esquecer. Fica a promessa: amanhã pelos campos correr, começam junto da ribeira e o mundo vão percorrer.