sexta-feira, 2 de abril de 2010

Sozinhez

No silêncio ouve passos… Batidas compassadas secas e crispadas pelo atrito no alcatrão. Pelas frestas dos blocos de pedra das paredes frias, invade o ar gelado da noite e o piar da coruja vizinha. Ela está sentada em frente à salamandra e ao candeeiro a gás pousado numa mesinha baixa de madeira escura e com pé de galo para afastar os maus agoiros. A poltrona ruça de sangue de boi esvaecido aconchega-se-lhe ao corpo já moldada pela preferência, e a manta nova já cheira à sua colónia de sempre. Descasca feijões verdes, para amanhã fazer a sopa do almoço, com a perícia de uma artesã de bilros, segurando a fiada por baixo ao comprido com a mão direita e segurança, lascando de uma só vez as lascas que são para sair com a mão esquerda. Corta as pontinhas de ambos os lados. Faz uma pausa para ajeitar os óculos da ponta do nariz para mais perto dos olhos e pousa o balde com os feijões prontos e os por descascar e limpa as mãos ao pano que tem no colo para se levantar e ligar o rádio lacado em madeira clara brilhante. Sintoniza a frequência 92.9fm, a rádio local de música da sua terra. Dezenas de vozes femininas esganiçadas cantam e batem com o pé formando o tom mais baixo da melodia. Homens entram à vez, um a um, e respondem ao choradinho das mulheres sobre os dias chuvosos intermináveis que estragam as colheitas para Setembro, com palavras entre um misto de marcha inspirada nos ideais comunistas de machos unidos para vencer, e de conforto protector. Ela sorri…Recorda os seus tempos de moça… De dançar ao som desta mesma música e de correr arrastada pelo namorico quase noivo para mesmo à frente do palanque dos músicos. Sente-se a sozinhez dela nas fotografias de meninos e meninas a preto-e-branco, corados nas maçãs do rosto e nos sapatos, parados em tímida pose, e nas flores secas nas três jarras de loiça frágil florida, e na cabeça de javali embalsamada e pendurada na pedra que a envolve em quatro paredes cubiculares e cruas… Ela lá sabe o que faz ali aquele javali, ou porque deixa as flores mortes já sem perfume no mesmo lugar, ou porque descasca o feijão sempre ao mesmo ritmo e modo. Ela lá sabe por que caminhos empreendeu para perder aquele quase noivo e se casar com um outro noivo mais velho que ela vinte anos e que a deixou na sua sozinhez de agora. É que ela sabe que foi ele que caçou o javali no dia em que se cumpriu um ano de casamento. Ele a amara e protegera como os homens das canções às mulheres em dó menor que dão na rádio que ouve sempre que liga a estereofonia velha, do tempo dele, que já partiu há outros vinte. Maria é seu nome. Viúva, seu estado. Sozinhito, o seu lugar na terra.

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