sábado, 16 de outubro de 2010

Noite perdida

Soubesses tu, noite perdida, noite escura e fria…

Ontem sonhei que dormias a meu lado.

Levada ao colo, deixei-me cair nos teus braços.

Em abraços nus que ao longo dos dias se repetiam.

Adormeci e o que eu perdi sem ver as luzes que o dia reflectiam.

E nessa noite, entre tantas outras…

Corpos enlaçados em constelações de pessoas a dançarem.

A vida fugidia guardada na minha mão.

O amor que se consome antes dos dias nascerem.

Noites a fio que não passaram de uma ilusão.

Se tu nasces eu adormeço sem abraços.

Fingisse eu não ser tua, fugisse de ti pela rua!

Era tudo igual.

Noite perdida pelas escolhas que se fazem.

E eu que só queria sentir os teus braços…

Noite perdida, noite escura e fria, se tu nasces eu morro.

Eu quero ver o sol raiar!

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Janela aberta

Abriu-se aquela janela
Abriu-se de par em par

Faça-se dela porta
E jardim com estrelas a brilhar

Aquela tímida janela
E o espelho em frente
São vista para a imensidão do teu olhar

São beijos arrancados
Na promessa de haver sempre
Uma porta aberta

Para aquela estrada
Para aquele lugar

Janela tímida, janela aberta
Deixa-me por ti olhar
Deixa-me entrar
Abrir aquela porta
Andar nesta vida contigo de mão dada

Deixa-me entrar
Deixa que te assome e transforme
Abra-se essa porta
Para veres o sol brilhar

Que a tua vida se mostre
Nesta e naquela nota
E aquela porta
Se abra de par em par

Deixa que te assome e transforme
Abra-se a tua porta
Comigo por teu par

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

O Quadro


Eu balanço no regaço do meu sonhar e me baloiças ao colo, anunciando a criança querida, enfim nascida, descendência das estrelas, que outrora fomos e que ainda guardamos no coração. Demonstras ramo de flores variadas e perfumadas como as cores e os humores da nossa humana condição e que são prova arrancada da nossa paixão. E tu olhas com respeito o céu, homenageando-o, buscando sua aprovação. Um barco de papel que flutua no mar em que me banho vestida de puro branco é carta de amor já lida e percorrida como a letra de uma canção, o cunho da promessa partilhada ao longo das horas. Talvez apenas a ilusão de que me pertence essa carta… E escondido nas flores, o espírito protege o observador e o amor da desilusão, guardião da mudança de estação, poeta de meu coração. Como lugar sagrado o sol num prado paradisíaco de mil sabores e mais as cores das flores. E flores, outras, sobem em coroa ao céu nas mãos devotas de quem acredita que da alma há sempre mais para viver, mesmo que sem se ver. Asas de anjo dão alento ao meu triste olhar que se perdia em dores por quem perdi, até que chegasses para me fazer compreender, finalmente, que o amor vem mais uma vez. És quadro inacabado, sinal de aviso prudente que a vida somos nós quem a pinta. E, lá ao cimo, talvez não tão próximos, os montes adensam-se alegres e fantásticos em êxtase, por ter finalmente chegado a hora dos corações.

domingo, 5 de setembro de 2010

Frutos do Amor

Tiver eu a graça, a graça da vida em mim, oferecida em dupla e una consciência, e jamais, como outrora noutras, às tantas da noite incauta de ímpeto, calor e suor, para nem falar do Sem Amor… Que o desejo enganou, trocando a palavra liberdade por irresponsabilidade. A mim. Em sobressalto e, posto isto, que faço eu que logo me enlaço com fervor por duas dúzias de olhares profundos e a promessa de, talvez, uma dada carta por abrir vier, chegada do outro lado do mar!? Tiver eu a sorte de te encontrar, e não te engano, sorte a tua se ainda me encontrares sem marcas de um longo desencontro e vã desilusão, num encontrão, solavanco arrancado ao granizo da vida, puxão de orelhas à impura intenção que não se leu naquele olhar, nem num outro, mas que, agora reparo, veio rondando-me desprevenida na minha inocência já ténue nos lençóis depois frescos. Sorte a nossa, meu amor! – se eu conseguir seguir estas linhas e lhes dar um bom destino, romance digno de um fim por imaginar… Ó – Ou serei, de facto, Cassandra? – Certamente possuída e punida pelo homem que me amou quando eu só amava outro. Só amo o impossível, meu amor, amo-te, inexistente, na profecia de que, onde quer que estejas, me lês e me voltas a escrever.

Vão-se as gaivotas. Vão-se os gaviões. O meu grito é tempestade em terra de água doce e ossos entregues a cães raivosos de agiotas que trocam palavras por afectos sentidos por desmentidos! Estou nas mãos de um povo ébrio que só se agita quando o sono(!) comanda a vida! Ó-toi-toi-toi! Barcaças e carcaças bóiam no mar e tudo isto vejo sem, contudo, ver. Ai de mim! Filha e mãe do Sem Amor! Vem tu buscar-me se já viste o amor passar ao redor, se já o conheces, que eu vou morrendo às partes, roídos os meus ossos e já ida a minha carne, ardida numa sentença que não é destes tempos, sequer!

Tenha eu a graça de despertar deste sonho mau que não é o meu. Puseram-me aqui de castigo, a penar por alguma alma que encontrou morada em mim, inventada num qualquer concílio de deuses imperfeitos; de deuses humanos, pois só vi humanos incutindo tal dor a um seu igual! Barbárie!!!

Não sou eu personagem trágica? Ah! Não sou mais vítima que culpada?

Perdi-te Filho do Sem Amor, mas meu filho, como te amei…!

Nem teu Pai, nem teu Filho… mas a mim, a mim conheceste o encanto e a dor, e pela última te peço perdão… do fundo deste coração partido, quebrado, prostrado por uma dor ainda maior, a de não te ter…

Que, se algo posso ainda pedir e desejar(-te), venhas justo e verdadeiro, ó amor, que eu posso esperar-te, mas apressa-te, senhor, que o tempo corre para os Filhos e futuros Pais do Amor.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Se tenho pouco para dizer e nada que escrever, o que faço aqui então?
Talvez pratique. Pratico. Não mais meditei do que cinco minutos na minha vida inteira. Por falta de técnica. Também não digo que tenha mais técnica quando se trata de escrever. Mas pratico. Concentro-me no som dos meus dedos nas teclas qual respirar. Correm palavras como imagens num sonho. Uma verborreia mental esclarecida, materializada. Observo, entre absorvida e distante, o rápido fluxo de energia que escorre pela minha mente e deixo o pensamento concreto esvair-se, ir-se, até ficar apenas o sabor agridoce da imaginação sem barreiras nem parâmetros, o vazio, e é aí que se insurge o impulso criador, a vontade de escrevinhar, de trocar o silêncio pelo escrito, breves palavras apenas para quem as lê que se impregnam de opinares e sentires mais ou menos poderosos. Dou de caras com o caos. Serei mesmo eu quem dita o que escrevo? Sou estátua viva erguida ao "Pensador" ou vácuo aberto para a leitura da vida; tanto faz, dicotomias democráticas sem voto a aguardar. Sacudo o pó, as cinzas do conteúdo que ardeu na ponta deste cigarro com a sede de profundidade a mandá-lo pastar para tentar chegar onde a palavra é absoluta! Mas para isso estão cá os textos religiosos, não as minhas pequenas e insonsas e apalavradas filosofias! Decididamente, a mente que escreve não é mais minha; não me reconheço. Despertou já o fuso reflexivo de quem procura mais dentro. Corro suavemente as cortinas brancas, véus de mistério, petit noms para grandes verdades, mas dou de caras com um clarão. Deslendo o caminho tantas e tantas vezes percorrido mas só que, desta vez, entro num espaço ao qual ainda não dei nome por só agora ter aqui acabado de chegar. Não por negligência perante o que leio mas porque esta descoberta já não me deixa pensar em mais nada além da imagem que fica por identificar. Não tenho outro remédio senão esforçar a miopia para enxergar o que está para além desta luz, mas esta não se deixa corromper por óculos, chapéus, protectores solares, palas de burro... Nada. Fica apenas uma certeza: aprendi a meditar.

terça-feira, 20 de julho de 2010

O Anti-Homem

Caminhando sem apreciar a beleza à sua volta, repara apenas nisso. Vai tão preso aos pensamentos e ao peso que carrega no peito, às pedras que leva para quando chegar à montanha construir uma muralha para se proteger da dor, que nem vê que o sol tardio incendeia o céu em notas púrpura e cor de fruto, deixando a lua e as estrelas vizinhas espreitarem ainda timidamente – Quando ergui esta demanda tinha como sonho encontrar-me, mas as árvores no seu lugar olham para a minha ingenuidade de caminhante errante – Porque não te sentas à minha beira e gozas a vista e a sombra que te ofereço? Porque persistes em caminhar de olhos fechados rumo à solidão? Porque aceitas os convites da tua mente nessa tua luta pela aprendizagem em vez de ficares em paz e pronto? – Ó árvore! Tu não entendes… Eu fui feito para sentir dor e os outros não me querem lá em baixo… não têm tempo a perder na busca da felicidade. E só eu sei que não a vou encontrar, nunca a vi, eu só tenho o sal para limpar e as pedras para erguer. - Caminha para o topo e deixa a árvore à conversa com o vento e pássaros. Alguns destes seguem-nos brincando à sua volta mas ele enxota-os para ficar às voltas com o seu turbilhão e grita-lhes - Vou até ao topo da montanha para me perder de vez e quando lá chegar tornar-me-ei invisível qual vento que nem poeira levanta. Sou tão só como o extremo daquela montanha onde espero encontrar-me e fico em paz. Não se me perca ou me encontre; só sei que vou só. Já me cansei de tentar ser como os outros. Tenho um estar, um mau estar que apenas me permite o silêncio, por isso, pássaros, vão ser felizes para outro lado e não se atrevam a construir ninhos nas entrelinhas da minha muralha. Vou erguer uma redoma e ficar quieto até a morte me vir chamar e há muito que a espero! – Diz de punhos cerrados e a olhar para o céu. – Não acredito em Deus. Deus é Judas! Traiu-me. E eu vou para lá onde Judas perdeu as botas e que ninguém se atreva a vir falar comigo! – E seguiu determinado e de olhos no caminho de pedras. Apanhou mais algumas e desejou cair pela encosta abaixo dado o peso destas. Mas não! Subiu e subiu. E subiu. Chegado ao topo, nem se deu ao luxo de olhar em volta. Começou a tirar cada pedra, uma a uma, devagar, do saco e a observá-las para ver que sítio do seu projecto podiam preencher. Grande empreendimento… Logo se pôs a coleccionar mais pedras, verdadeiros calhaus afiados, redondos, grandes, achatados. Não comeu. – Ah. Finalmente sozinho. – Não mais sozinho que antes, embora. Logo fez de acordo com a sua demanda, apressada mas cautelosamente, pois, apesar de tudo, não queria morrer prematuramente; queria viver a sua até ao fim, até ao fim! E não queria ser salvo. Mas o que teria acontecido ao homem que queria viver num purgatório infernal em vida!?! Ao homem não tinha acontecido nada. Nada. Nada! O homem nunca experimentara o amor. Esse complexo mistério que alimenta as vísceras(!) de um ser. Mas a ele não. O amor, esse elixir de vida, nunca o tinha abençoado, passou-lhe à frente mas ele nunca o viu com olhos de ver, sem querer olhou sempre para o lado. À sua frente tinha agora a missão de se purgar da humanidade, de se lavar dos perfumes e costumes. Ah! Mas a vida tem tantas voltas que acabou por deixar a sua casa sem tecto, sem saber o que esperava, talvez uma chuva ou um nevão para o agonizar mais um algo. E na segunda noite, uma forte e espantosa luz veio buscá-lo para o juntar à alma unitária de todas as vidas e paralelismos possíveis e imaginários. Não teve remédio que se deixar puxar pelo pescoço. Pensava que morria, mas acabara de nascer.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

À noite

Tudo a postos? As luzes já piscam antes da chegada dos convidados, a música, claro, a música espera-os para despertar numa bateria forte, forte e ritmada como o som dos tambores e dos terramotos e dos vulcões. Mas estes terramotos e vulcões ninguém teme. E eles chegam. Chegam aos grupos de três, sete, dez, às vezes mais, e vêm preparados, expectantes para a grande noite. A pista abre com a chegada do dj numa grande entrada triunfal de profusão de instrumentos e respiração profunda e inspirada. Os copos começam lentamente a baloiçar ao estilo da dança e os corpos movem-se descontraídos mas compenetrados na pressurização que a música lhes permite. Os ventres das mulheres revibram com a batida e os homens começam a despertar para os seus movimentos sensuais e rostos alterados em sorrisos entre o à vontade e o secreto de quem ouve a música à sua maneira. Os grupos dispersam-se e unem-se outra vez, vezes sem conta, e os bares estão cheios. Mesmo quem não bebe dança como se não houvesse amanhã. E será que há? Talvez não para todos. Mas hoje é dia de festa! E isso, sim, interessa. Mais um copo! Mais um brinde! E o calor aumenta, o som sobe e a dança torna-se una. Todos dançam ao mesmo ritmo, em estilos diferentes. Parece um ritual primitivo, talvez de acasalamento. Casais tocam-se e trocam olhares que cantam. E uma quebra no som permite respirar, novo mix, uma passagem, nova música e mais uma dança. Os corpos aguentam até o dj aguentar e, no fim, pedem sempre, sempre “Só mais uma!”. Se tudo correr bem, daqui a três quinze dias, volta a festa. E todos irão voltar.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

No fim da noite, ao amanhecer

Dispo-me. Largo o casaco de pêlo falso, só uso pêlo falso, no cabide de pé pintado em marmoreado de amarelo e cinza. Dispo o vestido justo e curto e deixo-o cair. Tiro os sapatos e os collants. Solto o colar de pedras e os ponho os pendentes de lado. A roupa interior vai parar ao chão. As jóias vão para a malinha de viagem antiga e os sapatos para o armário. É Fevereiro e o chão de pedra está gelado. Caminho sobre a ponta do dedo grande e o calcanhar, numa posição bizarra para evitar que a alma do pé fique fria, tão fria como o gelo picado de uma caipirinha. Visito apressadamente a cozinha e ligo o esquentador. De volta à casa-de-banho, ligo a água quente. Espero que esteja a ferver e entro. Passo a água quente pelos pés, pernas, barriga, peito, ombros e subo até à cabeça. Deixo a água escorrer quente dos cabelos ao corpo. Sinto a reacção da pele à água e começo a soltar-me lentamente desta noite à medida que o meu corpo aquece. Revivo as imagens amorosas da tua existência. Os teus sorrisos tímidos o teu olhar directamente no meu, visitando os recantos mais profundos e preciosos do meu ser…Desligo a água por segundos para passar o champô pelo cabelo mas está tanto frio que volto a abrir a torneira. Coloco o chuveiro junto ao peito e debaixo do braço direito e sinto o calor do teu beijo na minha cara, a tua pele lisa, suave e fresca a passar pelo meu rosto num aconchegar doce e terno. Recordo a sensualidade dos meus movimentos e o teu mordiscar de lábios discreto mirando as minhas ancas, as minhas ancas de parideira às quais tiras medidas. Sim, o meu corpo foi preparado para a maternidade, para ser mãe dos teus filhos. Conheço-te há mais tempo que a minha maturidade. Lembro-me de te olhar de lado, perguntando quem é este homem…? Sim eras tu o elegante homem que mexia comigo mas a quem não me atrevia a chegar perto. Agora é inevitável. Fazes parte dos meus sonhos, és amor, luz e paixão e eu sou a mulher que te ama e tu amas isso.

domingo, 4 de julho de 2010

Aniões, Catiões, Neutrões, Protões

Sou assim, um ser que habita em cinco dimensões.

Um ser de luz em mim que vive há milhões.

Nasci assim, para alimentar os outros corações.

Como a força dos trovões.

Vivo assim, da escolha que fiz para esta vida e nas vidas já do tempo de Camões.

Tão frágil e invencível, uma roseira brava e seus botões.

Plantada pelas mãos de um sábio e seus dez anões.

Para ser amada por quem compreende o meu perfume e me lê nos meus jargões.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Sonho real

Tu, ó cidade, tu não me iludes nem me desiludes.
És feita de betume e tapume e de sonhos de concretização.
Deixa que te leve no meu peito, sem mágoa nem defeito.
Deixas-me cair nas ruas da amargura, nas noites de loucura.
E ao teu ritmo sempre impões regresso, na escada do sucesso.

Mas, se tu me deixas, também eu te deixo.
Deixo-te ser pequena em redoma e sodoma.
De tantos votos de valor que exiges a mim e a outros tantos, sem pudor.
Na correria em que nos metes loucos, andamos sempre à procura de harmonia.
E em busca da tua glória, que é sempre um pouco patusca.

Deixa-me que eu encontro a paz que tu não és capaz.
Onde tu nem chegas aos calcanhares e onde me posso perder em mil lugares.
Deixa-me voar para casa, para a que trago dentro e que não cabe na tua asa.
Uma casa sem barreiras, que nem por desleixo perderia a minha vida fechada no teu barrote cruzado, nem à lei do serrote!
Uma casa feita de sossego, paz e redescoberta interior; a ulterior casa dos sonhos de cada um.

Aqui não há paredes que quebrar, só ar puro para respirar.
Aqui todos os caminhos que eu percorrer serão protecção para o meu coração.
E todos os seres vivos deste lugar conspiram para te levar um pouco deste ar.
E quando eu voltar, já não serei mais eu quem volta, mas sim o meu ser pleno de amor e calor.
A paz que tu precisas de receber e que resta tão pouco nos Homens que aí habitam, tanto que tomas deles!

E quando eu voltar… Tu hás de mudar.

sábado, 29 de maio de 2010

O fim(?)

Garras afiadas em desalinho e defesas em prédios agora em desconstrução para erguerem renovadas belas unhas da civilização. Profetas do caos. Pergunto o estarei aqui a fazer. Para que lado tombar se vida digna se presta a acabar ou a começar? Desistir? Parar? Parar para pensar. Mas como parar? Se alguém disse que parar é morrer, e não se pode desistir, é contra a natureza do jogo. Abrandar. Cada um segura o que pode. Uns agarram-se aos prédios, outros aos carros, alguns às árvores tombadas, às mãos estendidas de barcos no meio do turbilhão. Mas para eles, os profetas da solidão, tudo é em vão. Mais vale acabar com as ilusões, com o querer, com o poder. Sim, sobretudo com o poder, sede da corrupção. Deitar tudo abaixo. Fazer de novo, em nome da preservação! Contradição? Voltar às águas, às lamas, ao jogo do pau e da pedra, à lei da sobrevivência, pois mais não fazemos hoje do que subsistir. Mantermo-nos. A lei da igualdade? Para que serve a constituição se novas leis a derrubam sem gratidão? Deixar cair no lodo esta sociedade para que nasça outra sabe-se lá por onde e porquê. Mantermo-nos à tona. Prosseguir. Agarrar os sonhos e deixar os profetas da solidão ficarem um recanto para o nosso ser, só nosso, de paz e contemplação. Deixar continuar. Mudar as regras do jogo e mandar embora o demagogo - assim me calo. Não quero perder nem mais minuto deste perene desequilíbrio com o oposto como meta. Já que a vida não é recta, que cada um espere o que quiser. A espiral continua a erguer… Diga-se o que se disser.

sábado, 8 de maio de 2010

Quanto Tempo?

Abro uma página ao calhas no livro de poemas de Florbela Espanca em busca de uma resposta da sorte ao que significamos. Para mim, juntos podemos ser uma canção. Mas para essa mestra da angústia dos amores incorrectos e não correspondidos, como a razão me diz do meu por ti, não passam d’”As minhas Ilusões”. Ela confirma o que a realidade me grita. Se eu vivesse em Nova Iorque, a cidade dos sonhos e da nova existência, como canta uma das minhas músicas preferidas, te esqueceria? Se eu vivesse um amor real, talvez te esquecesse.

Porque me olhas

Se não podes corresponder-me

No meu sonho de ti

E desejo de ter-te?

Mas, no meu íntimo, existe a sensação, a intuição, a certeza, de que um dia iremos viver os sentimentos que me unem a ti e que a ti te fazem fitar-me vezes sem conta, tempos a fio.

O que terás para me dizer

Nesse silêncio amoroso

Na busca de mim

Em tom de voz meloso?

Mas quem sou eu para acertar nas certezas do meu ser mais profundo, se nem tu nem eu somos capazes de pôr em palavras o que temos em comum. Tu bem me procuras, mas nunca te decides a encontrar-me. Não sou capaz de pensar que o destino, que somos nós que o fazemos, não nos juntará, um dia, para sempre. Essa hipótese entra no meu livro mas não sou eu quem a escreve. Conheço uma pessoa que tanto desejou que alcançou.

Se apenas o tempo

Me concedesse mais um momento

Daquele que tivemos

Para saber o que vivemos…

Mas estarei eu morta, baleada, impedida de seguir em frente, na ilusão do futuro, que não é mais do que um hoje sonhado? Será esta sede, esta fome, este palácio nas nuvens de algodão doce, um dia, uma casa forte com janelas a avistar o paraíso?

Eu estou pronta.

E tu, quando estarás?

domingo, 11 de abril de 2010

My prince´s promisse

When I was little I used to read little girl´s stories and therefore I met a strong prince who climbed a tower just to see his lover and a determined prince who pursued a whole kingdom to give something back to a girl with whom he just had danced. I also met a romantic prince who kissed a dead girl just to mean he loved her beauty and I met another prince who’s pure heart conquered love above appearance. When I was young I read “Le Petit Prince” and I discovered a wise prince child boy and I wished to meet him to become his mother. Now I’m a bit older but I still wish to find a strong, determined, romantic, pure hearted prince to have a wise child ;)

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Os pombos de Lisboa

“Perru-peruuuu”. Caminham eles em passos desajeitados de quem chama pelo peru e de quem, sobretudo, não sabe caminhar nem falar com a elegância do paavão-paaavão. Estropiados, alguns demonstram em vez de patas com três garras, quatro, coutos e deformações congénitas que dão direito a subsídio de alimentação por parte dos moradores que querem à força cuidar compaixonadamente daquela multidão como se ainda crianças de parque fossem. Existe, no entanto, o consenso de que se trata de uma infestação – Uma praga! – afirma uma. – Que noooojo. – desdenha outra. Vozes de protesto que ao Estado parecem não chegar… “Eles” lá lhes dão contraceptivos como, nos dias 28 e 30 de Abril de 2010, a malta contra a sida irá dar na cara do Papa àqueles que não concordam com a interdição da Igreja Católica Apostólica Romana ao uso do preservativo mas que a seguem. Antes a sida, querem ver… Mas os pombos pouco querem saber disso! Eles populam todo o ano e dão à cidade novas vagas de familiares que nem se deixam apanhar na mão de uma criança, de tão baptizados e (ex)comungados que estão pelo nosso pequeno ódio de estimação. Deixando-se ficar na rua até ao último milímetro que os separa do carro que vai a passar para se esvoaçarem para os lados ou mesmo para debaixo de uma roda… eles bicam em pontas de cigarro à falta de melhor, apresentam piolhos e outras doenças que eu não sei quais são, mas que toda a gente afirma terem, e sobretudo rondam as mesas das esplanadas, não hesitando em lhes saltar para cima caso hajam restos ou pré-restos, do que quer que seja e de quem quer que sejam. Mas que instinto de sobrevivência têm!!! Não admira que os doadores de migalhas os aceitem na sua força de viver. Cá eu, só tenho umas coisinhas a apontar… Pombo: sai da frente do meu carro, não me cagues em cima, desampara a loja do meu almoço, não comas beatas que ainda morres de cancro do pulmão e, já agora, não oiças a Igreja, usa preservativo.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

Sozinhez

No silêncio ouve passos… Batidas compassadas secas e crispadas pelo atrito no alcatrão. Pelas frestas dos blocos de pedra das paredes frias, invade o ar gelado da noite e o piar da coruja vizinha. Ela está sentada em frente à salamandra e ao candeeiro a gás pousado numa mesinha baixa de madeira escura e com pé de galo para afastar os maus agoiros. A poltrona ruça de sangue de boi esvaecido aconchega-se-lhe ao corpo já moldada pela preferência, e a manta nova já cheira à sua colónia de sempre. Descasca feijões verdes, para amanhã fazer a sopa do almoço, com a perícia de uma artesã de bilros, segurando a fiada por baixo ao comprido com a mão direita e segurança, lascando de uma só vez as lascas que são para sair com a mão esquerda. Corta as pontinhas de ambos os lados. Faz uma pausa para ajeitar os óculos da ponta do nariz para mais perto dos olhos e pousa o balde com os feijões prontos e os por descascar e limpa as mãos ao pano que tem no colo para se levantar e ligar o rádio lacado em madeira clara brilhante. Sintoniza a frequência 92.9fm, a rádio local de música da sua terra. Dezenas de vozes femininas esganiçadas cantam e batem com o pé formando o tom mais baixo da melodia. Homens entram à vez, um a um, e respondem ao choradinho das mulheres sobre os dias chuvosos intermináveis que estragam as colheitas para Setembro, com palavras entre um misto de marcha inspirada nos ideais comunistas de machos unidos para vencer, e de conforto protector. Ela sorri…Recorda os seus tempos de moça… De dançar ao som desta mesma música e de correr arrastada pelo namorico quase noivo para mesmo à frente do palanque dos músicos. Sente-se a sozinhez dela nas fotografias de meninos e meninas a preto-e-branco, corados nas maçãs do rosto e nos sapatos, parados em tímida pose, e nas flores secas nas três jarras de loiça frágil florida, e na cabeça de javali embalsamada e pendurada na pedra que a envolve em quatro paredes cubiculares e cruas… Ela lá sabe o que faz ali aquele javali, ou porque deixa as flores mortes já sem perfume no mesmo lugar, ou porque descasca o feijão sempre ao mesmo ritmo e modo. Ela lá sabe por que caminhos empreendeu para perder aquele quase noivo e se casar com um outro noivo mais velho que ela vinte anos e que a deixou na sua sozinhez de agora. É que ela sabe que foi ele que caçou o javali no dia em que se cumpriu um ano de casamento. Ele a amara e protegera como os homens das canções às mulheres em dó menor que dão na rádio que ouve sempre que liga a estereofonia velha, do tempo dele, que já partiu há outros vinte. Maria é seu nome. Viúva, seu estado. Sozinhito, o seu lugar na terra.

sábado, 27 de março de 2010

Das coisas que gostamos

Dos segredos da vida, do futuro e dos mistérios da nossa vida interior (Feira Esotérica em Oeiras, dias 25, 26 e 27 de Março).

Da mudança de hora de Verão (domingo dia 28 de Março) que é sinal de dormir menos mas também que o sol vem aí em força.

Das noites de lua cheia (a próxima é já 2ª-feira, dia 29 de Março).

Os primeiros morangos do ano (que já estão à venda no Praça da Figueira).

A alimentação biológica (todos os sábados no Jardim do Príncipe Real, das 8h às 15h).

Do primeiro gelado (o Santini vai abrir na da Rua do Carmo, na Baixa, em Abril).

Do Jardim da Estrela (que está aberto até à meia-noite às sextas e sábados).

De ler. O meu primeiro livro está acabado (espero que as Crónicas da Alma dêem origem ao segundo… :P).

Ai ai… E de ouvir música (“3 às Sextas", na RFM, é que está a dar, o programa do meu primo Tomás Anahory)!

E de vocês!!! :D

domingo, 21 de março de 2010

Ode à gente

Da terra amada, que em tempos deu a nascer reis e rainha, senhores e cavaleiros, restam os camponeses, alma das raízes profundas do país e da vida natural. As gentes abençoadas perduram no tempo e apreciam o alimento da nossa raça ajudando-o a crescer. Ó gente, de ti pouco escreveram nos livros de escola, dos teus grandes feitos: das batalhas que travaste sem saber armar, das amarguras que guardaste, das paixões e das vozes com que te ergueste pela nação do teu rei e do teu filho e do teu pai. Tu guardas a herança da lembrança de que esta terra nos possui e pertence. Ó povo, és canto e danças livre as tradições do teu lugar e a voz do planeta ergue-se para te ouvir. Danças e cantas em transe e ascendes ao plano invisível que tanto amas, mas no fundo és simples, puro e escorreito, dizes sempre o que te vai na mente, sem ensaios nem poesia. Ah, e o clero, esse que formou os outros, deixou-te para trás. Mas tu correste, libertaste-te e ergueste-te senhor das sempre tuas terras, serras, e campos brancos de brilho de ouro, o ouro que nunca tiveste. Chegou a hora de receberes tu a vénia dos senhores, ó gente de coragem, pulso cerrado na enxada e chapéu de lorde na cabeça. Minha gente, hoje o chapéu é teu!

sábado, 20 de março de 2010

A Primavera em ti

Se tu fosses um vento, serias a brisa da Primavera que acabou de chegar. Se o vento escolhesse uma cor, seria o azul que tu preferes e eu seria a nuvem da minha cor branca, para sempre a viajar a sul, ao teu sabor. Teu nome é palavra que frisa que o amor veio para ficar. Tu que me queres em prazer e redomas de calor e paixão, tornas a vida calma, simples e mais circular ao lado do sol de Verão. Quem dera a muita água quente sentir-te assim de mil cores e formas como a noites de luar. E quando a lua mergulha no dia, tu acordas para me dizer que isto não tem fim e que há-de haver sempre mais chão para aprender a amar. Para teu e meu alento enfim, que o nosso cresça como a hera e que eu faça com a tua presença perdure, e que a tua cabeça me ature!

quarta-feira, 10 de março de 2010

O dia em que nascemos de novo

No dia em que nascemos de novo está sempre um belo dia de sol e nos dias anteriores e posteriores choveu. No dia em que nascemos de novo quase morremos antes de vir a revelação. No dia em que nascemos de novo celebramos com o mundo e o mundo responde de volta com sorrisos, abraços, boas notícias, sorte e amor. Acaba-se a tristeza porque aprendemos a aceitar e a lidar com a dor. A dor é bela, ensina-nos a crescer. Mas no dia em que nascemos de novo ela desaparece para se relativizar para sempre. No dia em que nascemos de novo há fé. Fé. Fé na sinergia da rede humana, nas nossas e outras boas vontades que também nasceram de novo ou que estão prontas para renascer. Acredito que todos renascemos. Aqui, agora, nesta vida. Não se ensina a nascer de novo; aprende-se. Não se trata de não crescer, mas sim de viver cada dia com determinação de alcançar esse ponto que todos temos dentro de nós e que queremos descobrir. Há quem chegue a descobri-lo e porque não eu e tu? Saberemos que nascemos de novo quando saímos da depressão, quando nos libertamos da opressão, quando finalmente falarmos com o nosso coração. E isto não é apenas um singelo verso feito de palavras fortes e bonitas. É uma verdade, tão pura e simples como só ela sabe ser. O dia em que nascemos de novo pode durar dias, meses, anos a fio e nunca acabar. O que interessa é renascer, aos poucos, devagar e com inspiração. Há quem nunca chegue a poder nascer e há quem nasça duas, ou mais, vezes. Que sorte a nossa, a dos vivos! ‘Bora nascer de novo?

quarta-feira, 3 de março de 2010

Hoje é dia

Há dias sem sal.

Há dias sem sol.

Há dias de seca e outros em que chove água, gelo, pedra, pau.

Há dias que quisemos mais e outros que nem vê-los, sobre debaixo de uma almofada.

Há dias demais e dias a menos.

Há dias que nos fazem falta para sermos o que queremos ser um dia.

Há dias que nunca mais acabam e muitos outros que não puderam ser acabados, arte-finalizados.

Há dias e dias e dias que não como uma só colher de calor.

Há dias e mais dias, todos eles iguais de 24 horas, todos eles diferentes em cada 86164.09 segundos.

Mas quem foi que decidiu que a vida se mede em dias, em horas, e minutos e que tais!?! E o esforço do meu dia em papel listado a prata e ouro???

Porque não em risos, em páginas, em lençóis frescos dobrados, em aplausos, em nuvens de algodão, em degraus de uma escada para a evolução?

Ele há dias… Existem tantos dias que virou apelido.

Há dias assim, assim e dias sim! sim! sim!

E tu, o que me dizes a mim?

Dia não, dia sim, apontas às pontas dos sapatos um “que dia...!”?

Ou no dia de hoje tiveste já a revelação e é desta vais viver o resto dos teus dias como se não houvesse outro dia?

Dia após dia, nos dias que correm, há homens que se fazem ao coração e à vida como se o dia fosse uma oração, em nome da evolução. E para eles o tempo é sempre certo, é justo, pois eles abraçam a dor com a mesma alegria com que a última os abraça a eles.

Mas e para quando esse novo dia...? Alguém tem horas?

Quando nasce o novo dia se não há sol?

Em que pulso usas relógio?

Eu não uso, faz-me alergia… Sou alérgica a ter de dormir até chegar o amanhã.

E eles dizem que o hoje é que interessa.

Se eu pensasse assim, saía de casa para a rua, metia-me num avião e não voltava, e largava tudo e depois? E depois… E depois!?! Então e o ontem???

É que ontem fiz planos para amanhã!

É que aqueles que dizem que esperar é uma virtude haveriam de começar uma discussão com os outros, os carpe diemescos… que até o ontem se metia! Eu concordo com os dois mas sou mais a favor dos dias com 30 horas e os fins-de-semana com três dias. E as luas e os sóis que esperem por nós como nós esperámos milhares de anos por elas e por eles. E qualquer dia subo a escada da evolução que me ofereceram por escrever para ti e vou lá cima ter uma conversinha com esse grande senhor astro-rei e peço-lhe educadamente para girar ele à volta da terra, para ver se não se cansa como o planeta azul ou se consegue evitar o degelo!

Afinal de contas, como é que te correu o dia?

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Viagem eterna

Abro os braços.

Respiro fundo.

Aqueço as mãos juntas e abro o piano.


Vejo o teu reflexo a chegar na madeira escura e o meu corpo reage. Inunda-me a noção de ti e tenho vontade de te doar a minha alma. As linhas do teu rosto não me trazem recordações, são vidas acabadas de nascer, novas verdades. Pergunto-me como pode a beleza ser tão real. Percebo como os teus olhos me cantam ao coração. Sais. Talvez não estejas com disposição para ouvir a minha música. Mas a que toca cá dentro não pára. Aparece na parede uma coluna desconcertada de cavalos alados batendo os cascos na terra que salta para se espalhar pelo meu vestido, deixando um cheiro fresco a ervas. Chego a perguntar baixinho se algum me daria tempo para os acompanhar. A sala está escura e a precisar de palavras, só se ouve um pássaro ao fundo lá fora que bate o compasso de um relógio adiantado para o seu tempo sem o saber. Penso como resolver o ideal que a tua presença me deixou. Organizo mil tácticas e escolho posturas como peças de roupa, hesito, hesito muito, mas o plano já está delineado: fico com a tua cara para mim, escolho guardá-la viva na memória com um abraço longo e apertado. E em parte já tenho um pouco de ti. Secretamente espero ter-te atingido. Distraio-me com as sedas coloridas que esvoaçam à janela e percebo que estou sozinha há horas, sentada em frente a um objecto que precisa de mim para cumprir o seu destino. Passo as mãos pelo marfim frio e escolho um tema que alcance os ouvidos distantes e que devolva o tempo ao pássaro que parou de cantar e que talvez tenha ido atrás dos cavalos. Já sinto o sol. Aquece a brisa que passa pelos meus pés descalços. Desta vez entras na sala pela janela, já vens vestido e estás rodeado de pequenas luzes que são mil estrelas de olhos abertos. Não falas, mas sorris. Reparo que os teus pés não tocam no chão e vêm nus, compridos, brancos; terás frio? A música chega ao seu limite e deixa como último suspiro um eco penetrante que se afasta por degraus cada vez mais vagos pelo silêncio até desaparecerem tragicamente. Começas por desenhar, na poeira que paira ao sol, um círculo. Pões-nos lá dentro, crias olhos e asas, para as viagens mais longas, cabelos e uma boca, e por graça dá-nos duas rodas, muito grandes, para as viagens ao passado. Perguntas se estou pronta e estendes-me a mão. Então, eu fecho o piano, aceno ao pássaro, que entretanto voltou, e tiro um pano da janela para servir nas noites frias. Agarramos uma estrela para entregar ao sol e vamos. Um dia, este dia tinha que acontecer.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

...

Aproximações. Ventos que se atraem, se tocam, girando a norte, cruzando-se com o destino de uma vela. Mas para onde leva o vento essa vela? Para longe do calor do dia… Para um amanhã que ao hoje pouco diz? Relações. Fachadas de prédios em constante reconstrução. Interiores em eterna remodelação. Não há obra que perdure, cal que não estale, telhado que não pingue, e tu e eu, betão ou gaiola pombalina, tão distantes entre si, em estranha convivência. Mas a cidade é mesmo assim. Por muito que se faça, haverá sempre mais trabalho a fazer. Não, nada é eterno. Nem o calor das tuas mãos nas minhas. Nem o gelo nas minhas agora quentes. Nem o brilho nos teus olhos hoje, como ontem. Placas tectónicas em movimentação. Cúmplices, semelhantes, em atrito. Porque disputam em silêncio? Sal e pimenta a boiar no mar da imensidão das oportunidades que a vida nos dá, mas que todas leva nas correntes, nas fortes e nas leves. Assim somos. Fugazes. Separados à nascença. Unidos pela vontade. Mas de quem?

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

A(o)bcecar

Abro esta página solta com vontade de a voltar a fechar. Hoje, não há verso que eu deseje verdadeiramente declamar, nem conto nem voz para me alegrar. Para quem me lê, nestas letras que matam árvores que dão vida, a vida que eu não tenho, eu só quero confessar, sou mais uma alma por aí a vaguear. E este estar não tem nada a afirmar, só chega de vez em quando para me atormentar. E se um poema fosse ar para um fogo me incendiar e me levar, e houvesse outra forma de falar neste lugar… Se alguém me quiser acreditar, há quem viva e quem se limite a durar e eu que não tenho nome a condizer para acrescentar. Por muitas voltas e voltas que dê, na minha vida não vai ninguém entrar para me conquistar. Sou só eu com uma voz que já não sabe cantar nem tão pouco amar… Ninguém me vem buscar para dançar enquanto a música não parar de tocar. E ao fim da noite sou eu que apago a luz e fico de pé à janela a ver outro dia despertar. Para quê esperar? Nesta casa vazia houve em tempos alguém que sabia pintar. E eu que não sei melhor que imitar, linha após linha, o mesmo soar… Já me tentei matar mas houve quem aparecesse á última hora para me salvar, e para o meu ou seu karma limpar, só que deste sentir não há quem me possa tirar. E se eu me quiser pisar, ninguém vem para me ralhar. Algo em mim ainda quer lutar e não há ninguém a observar para me declarar como quem quer derrotar este lugar. Angustiar é outro verbo que posso usar neste mar onde não há navio a passar, numa noite sem estrelas ou luar. Há de passar… e se não, nada mais tenho a declarar. Vou, então, esperar a minha hora chegar, pois não há céu nem inferno para me assustar. Esta terra é um eterno purgatório e não há via fácil por onde caminhar ou como escapar. Pelo menos, existem sempre pessoas felizes que eu posso admirar. E eu, que tenho para dar? Olho com vagar os pássaros a voar, a buscar algo a que aspirar, outros no ninho a chilrear, mas não entendo o seu palrar nem poderei saber que histórias têm para contar. Há quem tenha um sonho a domar. E eu tenho de esperar porque um dia a sorte pode mudar e este verso ganhar outra imaginação com que rimar. E eu aqui vou ficar até me animar. Talvez você me possa aconselhar, se por telepatia puder comunicar. O luar já se quer mostrar e eu preciso de parar e deixar o meu pensar descansar… Amanhã haverá outro dia a vingar e eu cá estarei para o aceitar. Mas não me vou sem lhe desejar o melhor antes de me ir deitar, fique bem e não se esqueça de me olvidar se este meu eu o perturbar.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Will you?

It’s like starting each day of an endless restarting,

knowing that my half that is half yours keeps on missing.

And although I try to full time around,

I’ll always come round back here.

And for as many lives I live and die,

I’ll find and loose you crossing streets I’ll never walk again.

Time really changed you since last life,

Almost didn’t recognize you, if it wasn’t for that look never to change.


But let’s come back to this life:

You look like you don’t want to know

and I pretend to understand but not comprehend.

Your look doesn’t look back for mine.

And I end on playing the art of disguise,

By pretending I pretend not to suffer in both heart and mind.


Will it be needed a next life, on this or another; to see the day you come and stay?

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Uma questão de minutos

NOTA: Antes de começar, o ideal será preparar as seguintes músicas de Dire Straits: Private Investigations e Your latest trick.


Depois de dias a fio a ver Stella entrar rubra e cintilante em casa, um dos quais abraçada a um ramo de flores, que afirmou ter sido um presente dos colegas de trabalho por ter sido promovida, ao que Morgan não acreditou porque, num mísero restaurante de estrada, não se recebe outra promoção que piropos e uma gorjeta de cinco dólares, além de que não vinha com cartão; e ao vê-la sair de casa para o trabalho quase a flutuar, deixando um aroma qualquer desconhecido e mais refinado que as colónias que costumava usar em dias normais no ar; e mais os longos silêncios à hora de jantar, sempre apressada para lavar a loiça e ir-se deitar… sempre antes dele… e não aguentou mais. Naquele dia, chegou a casa e, antes de mais, pôs o álbum On the Night, ao vivo, de Dire Straits, a tocar na faixa cinco: Private Investigations… Play. A multidão gritou-lhe aos ouvidos durante nove segundos. Fechou o CD e pousou-o. Ergueu-se e abandonou lentamente a aparelhagem, dirigindo-se para o centro da sala e antevendo, supondo o final de aquilo tudo … Deixou cair os braços pesados com o rosto cabisbaixo e, em desânimo, sentou-se num banco de apoio para os pés. Baixou a cabeça pendurada entre as pernas e chorou um minuto… Soluçou para dentro, vendo as lágrimas mancharem o tapete encarnado, como o fio de onde nasce um rio, um rio que morre para o mar; o mesmo minuto que introduzia a música, triste e melancólica; tudo por julgar ter razões de desconfiança daquela que era e tinha sido o único amor da sua vida. Doía-lhe a sua felicidade egoísta, sem razões aparentes que o incluíssem, semana após semana, sem partilha, moldada em segredos como os risos de crianças divertidas com alguma partida, escondidas atrás de uma árvore centenária. E esses risos ecoaram na sua cabeça… Olhou em volta e, envergonhado pela sua posição de cobarde, levantou-se de repente, mas sentiu o sangue subir-lhe à cabeça depressa, depressa demais, e quase esmoreceu. Mas no mesmo momento em que se preparava para se abandonar à frustração e deixar-se cair no chão, ouviu, bem alto, os gritos da multidão a encorajarem-no a dirigir-se ao quarto, a chamarem pela raiva da sua coragem. Esfregou as lágrimas do chão como se apagasse uma beata suja e preparou-se para subir pesadamente as escadas da casa pré-fabricada de madeira. Ouviu o ranger vagaroso, suplicante, do chão. Suplicava-lhe para desistir de ir mexer nas coisas de Stella, para se aguentar firme na sua confiança. Mas degrau a degrau, passo a passo, as vozes chamavam-no cada vez mais alto e, na sua mente, formavam-se imagens de Stella a ler o bilhetinho que acompanhava as flores: Adorei a noite passada. Sê minha. Imagens de Stella… a passear de mãos dadas no ar, a dar a dar, e a rir, a levitar sobre os relvados de um qualquer parque; carícias trocadas num café longínquo à hora de almoço; cabelos a esvoaçarem ao vento no carro de outro homem; promessas trocadas para largar tudo e partir rumo ao México, Havai, Canadá… com o seu rico amante cliente do restaurante ou, quem sabe, até com o fruto de ambos já na barriga. Que imagem terrífica…! Era já tarde demais. Para ele, o jogo tinha começado. E tinha de acabar. Toda aquela suposta informação confidencial de Stellla iria cair nas suas mãos, como pétalas soltas desfalecidas. Entrou no quarto e começou por olhar em volta sem conseguir pensar por onde começar. O desespero tolhia-lhe o espírito. Encontrava-se entre a porta e a mesinha de cabeceira dela. Abriu devagarinho a primeira gaveta, como se ela pudesse ouvir. Uma fotografia dos seus pais em novos e um terço. Abriu com maior vigor a segunda: uma agenda de telefones que folheou em vão. A terceira, vazia. Dirigiu-se ao armário dela. Abriu a porta de correr com violência fazendo-a voltar para trás e voltou a empurrá-la com igual força mas, desta vez, travou-a com a mão. Começou a atirar pelo ar as caixas de sapatos que abria. Nada. Só papéis de jornal que serviam de formas. Chegou a abrir as folhas de jornal e pista nenhuma encontrou. A tensão aumentava. Limpou a testa. Desceu e foi direito ao escritório. Vasculhou as duas mesas com papéis empilhados e deixou-os esfolheados como cartas de jogar. Passou um por um, um por um, dos seus dias naquela grande agenda, mas era óbvio que nada iria lá encontrar. Frustrado e irritado, sublimou a sua ira e teve uma ideia suave, romântica, que nada dava a entender o que se havia passado. Voltou a empilhar os papéis, fechou as gavetas, guardou a agenda, subiu ao quarto e fez das folhas de jornal novamente bolas que pôs dentro dos sapatos. Já na cozinha, abriu o livro de receitas em Fevereiro, mês dos namorados, e lá estava. Procurou cogumelos frescos, courgettes, alho francês, compota de tomate e gengibre, e pimentos para um salteado. Começou por cortar vigorosamente os legumes um a um, contendo a raiva numa linha de equilíbrio ténue para não cortar um dedo, por muito que lhe apetecesse. Tirou do frigorífico massa crua e queijo de cabra, e espinafres em folhas do congelador. Cortou alho e passou-o em azeite com os espinafres. Compôs uma bela lasanha de espinafres e queijo de cabra que deixou no forno a cozinhar. Enquanto continuava a cortar os legumes, ouviu a chave a rodar, a porta a abrir, e sentiu o coração disparar acompanhado de uma náusea. Stella não estranhou vê-lo na cozinha, nem ao whisky que entretanto lhe apetecera. Espreitando da entrada, deu-lhe um breve olá, leve e perfumado, acompanhado de um sorriso tímido, e logo desapareceu para pousar o casaco no bengaleiro – Quanto tempo falta para o jantar? – Perguntou – Tenho tempo para um duche? – Ele bramiu que sim. Tudo acontecia na sua cabeça. Como iria começar a conversa? O que lhe diria? Sei que me andas a trair? Já sei de tudo. Quem te ofereceu esse perfume caro que não tens dinheiro para comprar? Minutos depois (pareceu-lhe uma eternidade), Stella estava fresca e bem-disposta, sentada na mesa da cozinha, de vestido novo, a olhar para os movimentos dele sem adivinhar a sua desconfiança e fúria, nem a discussão que ele se preparava para ter. Riu alto quando ele se queimou ao tocar na pega do forno eléctrico com a mão e isso deixou-o extremamente irritado. Disfarçou. Deu um longo golo no whisky e passou a mão por água. Ela entretinha-se a olhar muda como uma criança que antes falava e que, com um susto, perdeu o piar. Em breves momentos, estariam a jantar. Morgan manteve-se de avental. Nem um elogio ao jantar, só o mesmo sorrisinho elegante enquanto ia virando ligeiramente a cara de lado para pôr o garfo, delicadamente, à boca, pequeno pedaço a pequeno pedaço. Tudo aquilo se transformava numa cómica narrativa surreal e a ideia de Morgan ganhava cada vez maior luz trágica e bem real. Quando seria o momento ideal? “Private Investigations estava quase a chegar ao fim e, num momento de suspanse, preparava-se para dar lugar à música seguinte: “Your latest trick”. Nem mais. Morgan sentia-se um joguete nas mãos de Stella. Juntou os pratos sujos no lava-loiça e fez café. Quando acabaram de beber café, olhou-a e tentou começar uma conversa. Pensamentos desconexos, raiva, frustração, pavor, ódio… deram lugar a um convite para dançar a próxima música, como tantas vezes fizera quando ainda eram só namorados. Ela abriu os olhos espantada, sorriu e disse – Porque não...? – Levantaram-se. Aproximaram-se e abraçaram-se. Enquanto os corpos se iam habituando ao ritmo da música, Stella trauteava a melodia e Morgan cantava a letra baixinho ao seu ouvido. Morgan aproveitou tudo o que pode: o aroma dos seus cabelos, o toque da sua mão na dele, o movimento do peito e do ventre apertados contra os seus e o encontro de pernas. Como podia andar a enganá-lo? Só podia ser da sua imaginação! Começou a sentir vontade de chorar no seu ombro e agonia… Pôs a mão à barriga suavemente, tocou na dela, imaginando que o filho imaginário do suposto outro era seu e meteu descansadamente a mão no bolso do avental. Pensava na letra da música… Não sei como isto aconteceu… aconteceu tudo tão rapidamente… Só parou quando sentiu a pasta quente e escorregadia descer-lhe pelas mãos e empapar-lhe as pernas, até ouvir cair os pingos encarnados que se confundiram com o mesmo tapete onde tinha chorado minutos antes, e viu-lhe os olhos fora de órbita em espanto mortal. Continuou agarrado a ela a dançar até a música acabar.

domingo, 31 de janeiro de 2010

As cores da cegueira

Ana Luísa tinha nascido cega. Helena, sua mãe, sentiu como é óbvio um enorme desgosto. Não pelas suas próprias expectativas depositadas numa criança que nem sequer quisera saber o sexo para ser surpresa, senão pela forte privação que a filha iria viver toda a sua existência. Então e as cores, as pessoas, a beleza… o perigo… as estradas cheias de carros, as pessoas com más intenções... O campo de defesa de Ana Luísa estaria limitado à extensão das suas mãos, ou no máximo à terrível bengala da pena dos outros. Depois de falar com o médico especialista sobre o que ocorrera e o que poderia ou não, neste caso não, ser feito, Helena afirmou-se forte e determinadamente – Há de ser uma criança como as outras. Estimularei os outros sentidos de tal forma que o seu mundo nunca será escuro. – Levou-a para casa embrulhada na manta branca que ela nunca viria, a sua primeira manta, reparou nos grandes e belos olhos abertos castanhos acinzentados com laivos de mel e chorou. Os olhos da criança moviam-se muito. Helena apercebeu-se que teria de estimular o tacto, a audição e o olfacto. Mal chegou a casa, foi directamente ao gira-discos e pôs as catorze valsas de Chopin a tocar suavemente. Que música alegre e inspirada! Pegou na recém-nascida ao colo e começou a dançar lentamente e a murmurar ao som da música enquanto lhe acariciava as mãos. E todos os dias dos primeiros dias de Ana Luísa, pôs Chopin a tocar. Depois veio Bethoven e Mozart. Falava com ela o tempo todo em voz de adulta e contava-lhe passo por passo o que ia fazendo com o seu corpo ou enquanto tratava das suas coisas. Cantava para ela canções inventadas que contavam as cores céu, da terra, do mar, da pele, das suas roupas… Decidiu logo que a vestiria com muita cor, alegre, suave como o choramingar dela. Esqueceu parte do enxoval branco neutro que havia comprado e encomendou na loja para crianças mais próxima de sua casa as cores do arco-íris. Ana Luísa cresceu calma, agitando os bracinhos sempre em busca de contacto físico com a realidade. Uma vez que Helena tinha deixado de trabalhar por receber uma herança da sua tia-avó que não tinha filhos, o tempo do mundo era todo seu. Bolas de borracha de levar à boca com diferentes saliências, rocas com diferentes sons, bonecos de materiais estimulantes, tudo o que pudesse apelar à sensorialidade, e sempre música a tocar. Conseguia fazê-la rir com cócegas nos pés e mais tarde mover-se para a frente e para trás seguindo a música. O tempo foi passando e as visitas não estranhavam a criança. Entravam em pezinhos de lã para não a assustar e iam-se aproximando aos poucos, conforme Helena lhes tinha pedido. Tratavam-na como uma adulta. Tocavam-lhe na mão e apresentavam-se em tom doce e suave e, então, pegavam-na ao colo. Aos dois anos, Luísa já parecia sentir alguma frustração. A mãe teve de arredar todos os móveis e cobriu a casa de fofas alcatifas. Queria gatinhar e levantar-se livre e tinha a presença da mãe sempre por trás pronta a ampará-la. Helena decidiu que antes de ir para uma escola de cegos, teria de aprender a circular pela casa sem se magoar, então, levava-a pelas mãos ora fazendo-as tocar na mobília, numa parede seguindo pelo friso de madeira e depois de volta pela parede oposta. Dizia-lhe nos infinitos percursos repetidos – Aqui é o teu quarto, a cama ao fundo, o armário na parede da frente e do outro lado os brinquedos. Sais, estás no corredor. Para este lado temos, aqui, a casa-de-banho. – E seguia sempre pelo friso até à ombreira. – Aqui é o quarto da mãe… Aqui é a sala... E aqui é a cozinha… A porta da rua está em frente, mas está trancada. – E tudo de volta para trás. Cada coisa tinha o seu lugar e não deveria mudar para que Luísa soubesse sempre onde encontrar cada objecto e saber com que o que contar ao andar pela casa. De vez em quando, lá havia um choque, um tombo, um desespero seguido de choro sofrido, mas rapidamente se punha de pé e tacteava de novo o ambiente e recuperava a confiança. Seis meses antes de Luísa entrar para a escola, tinha cinco anos, Helena quis-lhe ensinar as cores. Já haviam tido várias conversas sobre como era o mundo para cada uma delas e cada vez que Ana Luísa perguntava – Como é, mãe? – ficava a aflição de dizer a cor de determinado objecto. Decidiu que descobriria forma de lhe dar a conhecer as cores, nem que fosse por sensações semelhantes. Este pensamento levou-a a lembrar-se de um livro das suas aulas de desenho no liceu e foi buscá-lo com a criança pela mão. – Estamos no lugar dos livros. Os livros têm muitas coisas interessantes e bonitas para aprender, mas os teus vão ser ainda melhores que estes, vais poder lê-los com as mãos! – Tirou o livro para fora, mas nem precisou de o abrir para se lembrar da matéria da “temperatura das cores”. Cores quentes e cores frias. O suficiente! Mas como lhe iria explicar a sensação visual que uma cor transmite? Olhou vagamente para o lado procurando respostas quando encontrou a um canto esquecido desde o Inverno passado o aquecedor a óleo. Sentou a criança no sofá e pediu-lhe que ficasse quieta – Vou mostrar-te uma coisa muito especial! Vais conhecer um bocadinho do meu mundo que passará a pertencer ao teu… – Arrastou o aquecedor chiando e ligou-o à ficha eléctrica. Começou – As cores que a mãe vê são reflexos de luz absorvidos pelos nossos olhos, quando estes podem ver. O mar, por exemplo é profundo, tem correntes e é frio. – Colocou-lhe a mão no aquecedor de metal ainda gelado – o mar é azul. O mar é frio. À medida que o aquecedor ia aquecendo lentamente, repetiu o exemplo – os campos de relva bicuda e fofa recebem algum calor do sol e da terra. A relva é verde. – Pôs-lhe a mão no aquecedor ligeiramente menos frio – O verde também é frio, mas menos que o azul. O verde é frio – Quando o aquecedor já estava morno, continuou – a areia é fina e rugosa, feita de pequenos grãos que são aquecidos pelo sol; a areia é amarela. – voltou a por-lhe as mãos no aquecedor – A areia é morna. A areia é amarela. – Seguiu pelo laranja dando o exemplo da manta quentinha cor-de-laranja que normalmente aquecia Ana Luísa enquanto a mãe fazia o jantar e depois passou ao encarnado – Lá ao longe, o sol é uma grande bola vermelha de fogo que aquece os nossos dias e os ilumina. É preciso ter cuidado com o sol. – Mão no aquecedor bem quentinho – O sol é quente. O sol é vermelho! – As duas radiantes passavam as mãos ao de leve pelo aquecedor – Ui! Ui! O vermelho é quente! – Cuidado com o sol! – Ria a Luizinha – Estou desejosa de saber a cor da minha saia de folhos tão elegantes..! Helena levantou-se e foi buscar uma travessa de framboesas com chantilly.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Numa noite de temporal

A voz do velho ecoa do monte ao chamar as cabras. O decrépito assobio do vento intensifica o chamamento e as árvores avisam os animais balançando ferozmente. Vêm aí chuva forte de Inverno e pode ser que chova toda a noite. Pastor, vem aí um carrascal... – diz o velho ao cão. O suposto aparecer do grandioso pôr-do-sol que é razão de contemplação, tornou-se num espesso disfarce pardacento e ouvem-se os badalos a aproximarem-se no escuro que não tarda. Por entre massa opaca de nuvens, umas nodulosas, outras planas e cerradas, tímidas e esparsas abertas de breves incandescências loiras e ruivas quase não se notam naquele desfile de fatiotas cinzentas tão iguais. O velho solta o Pastor que a ladrar em redomas às cabras vai morder os calcanhares às patas das mais teimosas. Todas fechadas em camas limpas, as cabras ficam na sua impaciência assustada. Mais uns fortes assobios triplicados pelo soar dos desfiladeiros das montanhas em que bate o vento e o simples monte fica sozinho, por fim, isolado até ao amanhecer. Mas se tudo parece calmo ao lume do velho solitário, a noite o velho engana. Lá fora, os assobios continuam para baforadas agudas tremelicantes e infindáveis e inspirações de gigante semi-adormecido. A chuva por fim cai brutal e, em casa do velho, ouvem-se as goteiras de metal feitas instrumento musical desconcertado. Ele pega no pedaço de carne feito ao lume e trinca-o descansado. Antes da segunda trinca, levanta-se para ir pôr os alguidares de plástico e metal no chão onde caiem ribeirinhos dentro de casa. Enquanto volta a comer, serve-se de vinho tinto e liga o rádio inutilmente, a chuva roubou a frequência para a sua ópera a meias com o soprano vento. Por volta das dez da noite, e depois de meia garrafa bebida, o velho sente-se inquieto. Pergunta-se a si próprio como pode o vento e a chuva incomodar um homem como ele? A pele trigueira enrugada, as mãos calejadas, as calças ruças e os sapatos sujos comprovam-no. Ele é um homem do campo, sempre foi. Mas naquela noite, sente uma espécie de pavor que o leva a trancar a porta e depois a destrancá-la para ir rapidamente buscar o capote para fechar as portadas das janelas por fora. O ar está gelado. Entra e esfrega as mãos por cima do lume, tão próximo que quase se queima não fossem as mãos estarem molhadas. Decide ler. Enquanto não mergulha na história, pergunta-se se as cabras estarão bem… E aí apercebe-se de que se os animais do campo se assustam com o temporal, porque não há de ele, bicho ser humano do campo sentir o mesmo? Já não há heróis! – recita bem alto aliviado mas, perante o prazer que o tornedó impôs, depois daquela voz que se ergueu confiante, o lamaçal e a ira dos céus o calaram. Resolve continuar a ler. Mais uns minutos e oscila entre ir buscar o Pastor para o proteger a si ou quedar-se quieto em casa. Mais uns momentos de solidão no calor do carvão contrastante com a pedra fria das paredes e começa a adormecer tapado dos tornozelos às orelhas com uma manta xadreza oferecida pela irmã. Começa vagamente a mexer-se e a sonhar com a irmã, com as ruas do Porto… da última vez que lá foi estava calor, era pleno Agosto… um sol de braseiro… No dia seguinte, foram encontrá-lo ardido queimado morto por uma faísca que tão bem o aquecia e que saiu do carvão, do lume que se foi espalhando por cima dos tapetes e da manta. Provavelmente não sofreu, o fumo deve tê-lo intoxicado primeiro, numa casota tão pequena destas – reportaram as autoridades à irmã e ao cunhado acabados de chegar da cidade ao monte onde continuava a chover. Ele bem que se sentia inquieto com o vento e a chuva… mas foi-se ao contrário.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Tu

Tu. Tu és tudo o que tenho. Quatro paredes, uma canção e tu… Tu, tu que mudaste a minha vida, trouxeste-me até ao encontro comigo própria. Tu salvaste a minha alma e deste-lhe sonho e objectivo. Tu és a voz do meu sonho. Tu és o que procurei durante anos a fio… Como não te ver se sempre estiveste aqui? Tu que brotas de mim, tu que és arte viva que pinta um quadro e compõe uma melodia para olhos e letras seduzir. Ah tu… Tu que fazes promessas que cumpres antes mesmo de eu ter tempo de acreditar, e tu que falas por mim, pelo meu amor, e em nome do mundo, em todas as línguas e por muitas mãos. A ti, a ti não te esqueço por muito que a vida peça de mim, tu és a vida que eu tenho para dar, a luz no meu olhar. Tu és a minha sede e a fonte que me dá de beber, um lago profundo em tons de verde avivado por uma cascata de água morna, onde me banho nos dias de frio ou calor. Tu acendes-me e apagas-me a mente, deixando-me ser eu, eu liberta. Tu és a pausa que eu faço ao exterior que corre em turbilhão, a voz que se ergue para a paz aclamar em bandeiras que um dia vou levantar para o mundo ver. És o meu canto e o meu caminho, és a alma de cada um de nós aberta para quem a quiser dar a ler. Tu és minha. Tu és de quem a deixar libertar. Tu, tu minha escrita, és o sabor do alimento que me dá vida, és o que chamam de dom, e és dever, és tudo aquilo que tenho para oferecer, em breves notas que dão à minha alma de beber perfumes puros como os da gente que passa sem me ver. Tu conheces-me melhor que eu a mim própria. Há em ti a chave para a maior e mais pesada e mais bela porta que há no meu ser, e este hino a ti, escrita, é mais uma prova de tudo o que fazes por mim.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

São fases

São fases como o dia e a noite, como o Inverno e o Verão. Mas tarda o Verão e o Inverno bate à porta todas as semanas. Os raios de luz, meros reflexos no vidro que se esbatem ao entrarem em minha casa, dão forma às poeiras que bailam e pairam sem outro sentido que a vontade do sol, esse breve sol de Inverno. Pelo menos há sol. São fases. E esbate-se a luz e vem a noite, uma nova fase, uma nova fase de lua nova. Esta noite não há luar, dizia o título de um livro, mas esta noite há estrelas que deixam no meu olhar o brilho da fase seguinte. Que seja melhor… Mas e são só duas as fases? Só preto e branco, só nu e cru? Hão-de existir intermédios! Nuances, cosidos e assados, vestidos elegantemente em trajes do antigamente, puxados em carroças fechadas conduzidas por um senhor vestido de negro e de cartola encabeçada. Mas e quem vai lá dentro? Vai o rei? Não, que a carroça não tem brocados de ouro. E, daí talvez vá o rei, o rei leitor que me leva a balançar uma vénia de esperança pelo meio-tom, pelo meio-termo, pela sua autorização para subir os cinquenta mil degraus até ver o verão, por fim chegar, e se for caso disso, me dê alento para ainda chegar a tempo de ver a Primavera surgir num botão de flor temerosamente revelado, e aí outra fase, que não as habituais duas, monótonas e distantes. Não deixem que se acabe a Primavera! Não a tomem num só sol quente de Verão! Não deixem o Outono só vir no Inverno, que as folhas pardas e douradas merecem ter o seu tempo, o seu tempo só para si, para o seu espectáculo a solo! Deixem a vida ter quatro estações. Não levem as crianças, nem os jovens, nem os adultos embora! Deixem-nos chegar à estação final. E às quatro menos um quarto chega o próximo comboio, mas não vai a lado nenhum com as crianças, os jovens e os adultos, leva os seniores a dar um passeio pela meia estação, um reviver de outros tempos com novas histórias para contar. Nada de luzes brancas e lúcidas ao fundo do túnel escuro da morte! Um reviver real, não lembrado; real, digno de príncipes, duques e condessas, de beijos trocados num qualquer apeadeiro na promessa de um outro beijo na manhã do devir. E os nossos avós lá vão mas voltam, cheios de pequenas flores brancas nos cabelos, quais puros incautos que são, e trazem também pedaços de uma terra nova onde há diferentes sentimentos dos quais nos habituámos a viver, todos humanos, feitos da mesma matéria e das mesmas lágrimas de sal. Trazem as luas como recordação e as cantigas e as histórias à volta do lume nos sacos de pano quentes como o pão, e nós devolvemos-lhes o espanto que merece a ruga da sabedoria e o franzir do conhecimento de quem já viu muitas guerras e que sabe que o Homem não muda, mas que pode mudar, tal como as poucas fases em que vivia há linhas atrás, há quinhentas e vinte palavras atrás. Graças ao rei que vai na carruagem, aos cinquenta mil degraus que subi, e às gerações que vivi e irei viver, conheço agora uma vida a cores, um banquete, talvez uma viagem de quatro estações. Até que um dia o sol se apague e não haja lua, nem estrelas, nem pão quente, nem lume para me aquecer.

sábado, 23 de janeiro de 2010

Manifesto Ecológico / Espiritual

É chegada a tua hora.

Chama-te o vento em fúria do alto das árvores.

Chama-te a maré ao nascer de um novo dia.

Sentes a vida a chorar baixinho? São as crianças do futuro que te querem ensinar.

Ouves o pulsar da Terra?

À noite, quando fechas os olhos e miras o infinito, é ao grande plano da vida que devolves o teu respirar. E, Homem, ages como rei no seu jardim!

Arrastas o teu manto enquanto passeias por grandes sonhos e estendes a mão às flores que apanhas para oferecer. Descobres as leis da Natureza e um dia crias as tecnologias e, sim, és mestre do presente, assim gostas de pensar, mas se proclamas vitória, observa bem porque tens sangue na tua espada, cavaleiro.

E os titãs de outro tempo, o fogo ardente e a força das marés unem-se e vêm para te gritar que este reino foi tomado há muito tempo atrás! Esta velha casa de família luta para sobreviver há mais tempo do que tens memória!

Tu, geração do presente, habitante do planeta Terra. Chama-te a urgência da vida!

Tu que vives rodeado de coelhos e cartolas, coisas e mais coisas com mil botões e cliques e mais luzes, coisas que vêm e vão, que são milagres num dia e no outro apenas restos da tua imaginação. E perguntas ao caos porque não as aceita se para ti morreram!?!

Morressem? Mas como se a vida ainda agora começou? É chegada a era em que há vida depois da morte. O futuro passa por ti e tu fechas os olhos. Então tu que és artista da evolção, não ouves o chamamento da tua Mãe? O que dirão os teus descendentes? Recicla a tua mente, geração do presente. Fazes do teu corpo arte e dás voltas ao mundo em defesa de ideais. Sai agora do comezinho e liga-te ao futuro, abraça a sobrevivência do teu planeta natal. Levanta-te e muda o teu destino! Tu mesmo o dizes: nada se perde, tudo se transforma.

É preciso fazer mais. É hora de saber melhor.

Vai e agarra as forças da destruição, toma rédeas, vira tripas coração!

Alimenta a seiva que corre no chão com a voz da tua coragem!

Grita ao universo que estás do lado da evolução.

Geração do presente, planta hoje as raízes das grandes árvores do teu sonho e recebe agora o sorriso dos teus filhos.

Vive hoje o sonho de amanhã.

Defende o teu planeta, geração do presente, pois nele habita a História das vidas que ainda estão por vir.