quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Viagem eterna

Abro os braços.

Respiro fundo.

Aqueço as mãos juntas e abro o piano.


Vejo o teu reflexo a chegar na madeira escura e o meu corpo reage. Inunda-me a noção de ti e tenho vontade de te doar a minha alma. As linhas do teu rosto não me trazem recordações, são vidas acabadas de nascer, novas verdades. Pergunto-me como pode a beleza ser tão real. Percebo como os teus olhos me cantam ao coração. Sais. Talvez não estejas com disposição para ouvir a minha música. Mas a que toca cá dentro não pára. Aparece na parede uma coluna desconcertada de cavalos alados batendo os cascos na terra que salta para se espalhar pelo meu vestido, deixando um cheiro fresco a ervas. Chego a perguntar baixinho se algum me daria tempo para os acompanhar. A sala está escura e a precisar de palavras, só se ouve um pássaro ao fundo lá fora que bate o compasso de um relógio adiantado para o seu tempo sem o saber. Penso como resolver o ideal que a tua presença me deixou. Organizo mil tácticas e escolho posturas como peças de roupa, hesito, hesito muito, mas o plano já está delineado: fico com a tua cara para mim, escolho guardá-la viva na memória com um abraço longo e apertado. E em parte já tenho um pouco de ti. Secretamente espero ter-te atingido. Distraio-me com as sedas coloridas que esvoaçam à janela e percebo que estou sozinha há horas, sentada em frente a um objecto que precisa de mim para cumprir o seu destino. Passo as mãos pelo marfim frio e escolho um tema que alcance os ouvidos distantes e que devolva o tempo ao pássaro que parou de cantar e que talvez tenha ido atrás dos cavalos. Já sinto o sol. Aquece a brisa que passa pelos meus pés descalços. Desta vez entras na sala pela janela, já vens vestido e estás rodeado de pequenas luzes que são mil estrelas de olhos abertos. Não falas, mas sorris. Reparo que os teus pés não tocam no chão e vêm nus, compridos, brancos; terás frio? A música chega ao seu limite e deixa como último suspiro um eco penetrante que se afasta por degraus cada vez mais vagos pelo silêncio até desaparecerem tragicamente. Começas por desenhar, na poeira que paira ao sol, um círculo. Pões-nos lá dentro, crias olhos e asas, para as viagens mais longas, cabelos e uma boca, e por graça dá-nos duas rodas, muito grandes, para as viagens ao passado. Perguntas se estou pronta e estendes-me a mão. Então, eu fecho o piano, aceno ao pássaro, que entretanto voltou, e tiro um pano da janela para servir nas noites frias. Agarramos uma estrela para entregar ao sol e vamos. Um dia, este dia tinha que acontecer.

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

...

Aproximações. Ventos que se atraem, se tocam, girando a norte, cruzando-se com o destino de uma vela. Mas para onde leva o vento essa vela? Para longe do calor do dia… Para um amanhã que ao hoje pouco diz? Relações. Fachadas de prédios em constante reconstrução. Interiores em eterna remodelação. Não há obra que perdure, cal que não estale, telhado que não pingue, e tu e eu, betão ou gaiola pombalina, tão distantes entre si, em estranha convivência. Mas a cidade é mesmo assim. Por muito que se faça, haverá sempre mais trabalho a fazer. Não, nada é eterno. Nem o calor das tuas mãos nas minhas. Nem o gelo nas minhas agora quentes. Nem o brilho nos teus olhos hoje, como ontem. Placas tectónicas em movimentação. Cúmplices, semelhantes, em atrito. Porque disputam em silêncio? Sal e pimenta a boiar no mar da imensidão das oportunidades que a vida nos dá, mas que todas leva nas correntes, nas fortes e nas leves. Assim somos. Fugazes. Separados à nascença. Unidos pela vontade. Mas de quem?

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

A(o)bcecar

Abro esta página solta com vontade de a voltar a fechar. Hoje, não há verso que eu deseje verdadeiramente declamar, nem conto nem voz para me alegrar. Para quem me lê, nestas letras que matam árvores que dão vida, a vida que eu não tenho, eu só quero confessar, sou mais uma alma por aí a vaguear. E este estar não tem nada a afirmar, só chega de vez em quando para me atormentar. E se um poema fosse ar para um fogo me incendiar e me levar, e houvesse outra forma de falar neste lugar… Se alguém me quiser acreditar, há quem viva e quem se limite a durar e eu que não tenho nome a condizer para acrescentar. Por muitas voltas e voltas que dê, na minha vida não vai ninguém entrar para me conquistar. Sou só eu com uma voz que já não sabe cantar nem tão pouco amar… Ninguém me vem buscar para dançar enquanto a música não parar de tocar. E ao fim da noite sou eu que apago a luz e fico de pé à janela a ver outro dia despertar. Para quê esperar? Nesta casa vazia houve em tempos alguém que sabia pintar. E eu que não sei melhor que imitar, linha após linha, o mesmo soar… Já me tentei matar mas houve quem aparecesse á última hora para me salvar, e para o meu ou seu karma limpar, só que deste sentir não há quem me possa tirar. E se eu me quiser pisar, ninguém vem para me ralhar. Algo em mim ainda quer lutar e não há ninguém a observar para me declarar como quem quer derrotar este lugar. Angustiar é outro verbo que posso usar neste mar onde não há navio a passar, numa noite sem estrelas ou luar. Há de passar… e se não, nada mais tenho a declarar. Vou, então, esperar a minha hora chegar, pois não há céu nem inferno para me assustar. Esta terra é um eterno purgatório e não há via fácil por onde caminhar ou como escapar. Pelo menos, existem sempre pessoas felizes que eu posso admirar. E eu, que tenho para dar? Olho com vagar os pássaros a voar, a buscar algo a que aspirar, outros no ninho a chilrear, mas não entendo o seu palrar nem poderei saber que histórias têm para contar. Há quem tenha um sonho a domar. E eu tenho de esperar porque um dia a sorte pode mudar e este verso ganhar outra imaginação com que rimar. E eu aqui vou ficar até me animar. Talvez você me possa aconselhar, se por telepatia puder comunicar. O luar já se quer mostrar e eu preciso de parar e deixar o meu pensar descansar… Amanhã haverá outro dia a vingar e eu cá estarei para o aceitar. Mas não me vou sem lhe desejar o melhor antes de me ir deitar, fique bem e não se esqueça de me olvidar se este meu eu o perturbar.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Will you?

It’s like starting each day of an endless restarting,

knowing that my half that is half yours keeps on missing.

And although I try to full time around,

I’ll always come round back here.

And for as many lives I live and die,

I’ll find and loose you crossing streets I’ll never walk again.

Time really changed you since last life,

Almost didn’t recognize you, if it wasn’t for that look never to change.


But let’s come back to this life:

You look like you don’t want to know

and I pretend to understand but not comprehend.

Your look doesn’t look back for mine.

And I end on playing the art of disguise,

By pretending I pretend not to suffer in both heart and mind.


Will it be needed a next life, on this or another; to see the day you come and stay?

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Uma questão de minutos

NOTA: Antes de começar, o ideal será preparar as seguintes músicas de Dire Straits: Private Investigations e Your latest trick.


Depois de dias a fio a ver Stella entrar rubra e cintilante em casa, um dos quais abraçada a um ramo de flores, que afirmou ter sido um presente dos colegas de trabalho por ter sido promovida, ao que Morgan não acreditou porque, num mísero restaurante de estrada, não se recebe outra promoção que piropos e uma gorjeta de cinco dólares, além de que não vinha com cartão; e ao vê-la sair de casa para o trabalho quase a flutuar, deixando um aroma qualquer desconhecido e mais refinado que as colónias que costumava usar em dias normais no ar; e mais os longos silêncios à hora de jantar, sempre apressada para lavar a loiça e ir-se deitar… sempre antes dele… e não aguentou mais. Naquele dia, chegou a casa e, antes de mais, pôs o álbum On the Night, ao vivo, de Dire Straits, a tocar na faixa cinco: Private Investigations… Play. A multidão gritou-lhe aos ouvidos durante nove segundos. Fechou o CD e pousou-o. Ergueu-se e abandonou lentamente a aparelhagem, dirigindo-se para o centro da sala e antevendo, supondo o final de aquilo tudo … Deixou cair os braços pesados com o rosto cabisbaixo e, em desânimo, sentou-se num banco de apoio para os pés. Baixou a cabeça pendurada entre as pernas e chorou um minuto… Soluçou para dentro, vendo as lágrimas mancharem o tapete encarnado, como o fio de onde nasce um rio, um rio que morre para o mar; o mesmo minuto que introduzia a música, triste e melancólica; tudo por julgar ter razões de desconfiança daquela que era e tinha sido o único amor da sua vida. Doía-lhe a sua felicidade egoísta, sem razões aparentes que o incluíssem, semana após semana, sem partilha, moldada em segredos como os risos de crianças divertidas com alguma partida, escondidas atrás de uma árvore centenária. E esses risos ecoaram na sua cabeça… Olhou em volta e, envergonhado pela sua posição de cobarde, levantou-se de repente, mas sentiu o sangue subir-lhe à cabeça depressa, depressa demais, e quase esmoreceu. Mas no mesmo momento em que se preparava para se abandonar à frustração e deixar-se cair no chão, ouviu, bem alto, os gritos da multidão a encorajarem-no a dirigir-se ao quarto, a chamarem pela raiva da sua coragem. Esfregou as lágrimas do chão como se apagasse uma beata suja e preparou-se para subir pesadamente as escadas da casa pré-fabricada de madeira. Ouviu o ranger vagaroso, suplicante, do chão. Suplicava-lhe para desistir de ir mexer nas coisas de Stella, para se aguentar firme na sua confiança. Mas degrau a degrau, passo a passo, as vozes chamavam-no cada vez mais alto e, na sua mente, formavam-se imagens de Stella a ler o bilhetinho que acompanhava as flores: Adorei a noite passada. Sê minha. Imagens de Stella… a passear de mãos dadas no ar, a dar a dar, e a rir, a levitar sobre os relvados de um qualquer parque; carícias trocadas num café longínquo à hora de almoço; cabelos a esvoaçarem ao vento no carro de outro homem; promessas trocadas para largar tudo e partir rumo ao México, Havai, Canadá… com o seu rico amante cliente do restaurante ou, quem sabe, até com o fruto de ambos já na barriga. Que imagem terrífica…! Era já tarde demais. Para ele, o jogo tinha começado. E tinha de acabar. Toda aquela suposta informação confidencial de Stellla iria cair nas suas mãos, como pétalas soltas desfalecidas. Entrou no quarto e começou por olhar em volta sem conseguir pensar por onde começar. O desespero tolhia-lhe o espírito. Encontrava-se entre a porta e a mesinha de cabeceira dela. Abriu devagarinho a primeira gaveta, como se ela pudesse ouvir. Uma fotografia dos seus pais em novos e um terço. Abriu com maior vigor a segunda: uma agenda de telefones que folheou em vão. A terceira, vazia. Dirigiu-se ao armário dela. Abriu a porta de correr com violência fazendo-a voltar para trás e voltou a empurrá-la com igual força mas, desta vez, travou-a com a mão. Começou a atirar pelo ar as caixas de sapatos que abria. Nada. Só papéis de jornal que serviam de formas. Chegou a abrir as folhas de jornal e pista nenhuma encontrou. A tensão aumentava. Limpou a testa. Desceu e foi direito ao escritório. Vasculhou as duas mesas com papéis empilhados e deixou-os esfolheados como cartas de jogar. Passou um por um, um por um, dos seus dias naquela grande agenda, mas era óbvio que nada iria lá encontrar. Frustrado e irritado, sublimou a sua ira e teve uma ideia suave, romântica, que nada dava a entender o que se havia passado. Voltou a empilhar os papéis, fechou as gavetas, guardou a agenda, subiu ao quarto e fez das folhas de jornal novamente bolas que pôs dentro dos sapatos. Já na cozinha, abriu o livro de receitas em Fevereiro, mês dos namorados, e lá estava. Procurou cogumelos frescos, courgettes, alho francês, compota de tomate e gengibre, e pimentos para um salteado. Começou por cortar vigorosamente os legumes um a um, contendo a raiva numa linha de equilíbrio ténue para não cortar um dedo, por muito que lhe apetecesse. Tirou do frigorífico massa crua e queijo de cabra, e espinafres em folhas do congelador. Cortou alho e passou-o em azeite com os espinafres. Compôs uma bela lasanha de espinafres e queijo de cabra que deixou no forno a cozinhar. Enquanto continuava a cortar os legumes, ouviu a chave a rodar, a porta a abrir, e sentiu o coração disparar acompanhado de uma náusea. Stella não estranhou vê-lo na cozinha, nem ao whisky que entretanto lhe apetecera. Espreitando da entrada, deu-lhe um breve olá, leve e perfumado, acompanhado de um sorriso tímido, e logo desapareceu para pousar o casaco no bengaleiro – Quanto tempo falta para o jantar? – Perguntou – Tenho tempo para um duche? – Ele bramiu que sim. Tudo acontecia na sua cabeça. Como iria começar a conversa? O que lhe diria? Sei que me andas a trair? Já sei de tudo. Quem te ofereceu esse perfume caro que não tens dinheiro para comprar? Minutos depois (pareceu-lhe uma eternidade), Stella estava fresca e bem-disposta, sentada na mesa da cozinha, de vestido novo, a olhar para os movimentos dele sem adivinhar a sua desconfiança e fúria, nem a discussão que ele se preparava para ter. Riu alto quando ele se queimou ao tocar na pega do forno eléctrico com a mão e isso deixou-o extremamente irritado. Disfarçou. Deu um longo golo no whisky e passou a mão por água. Ela entretinha-se a olhar muda como uma criança que antes falava e que, com um susto, perdeu o piar. Em breves momentos, estariam a jantar. Morgan manteve-se de avental. Nem um elogio ao jantar, só o mesmo sorrisinho elegante enquanto ia virando ligeiramente a cara de lado para pôr o garfo, delicadamente, à boca, pequeno pedaço a pequeno pedaço. Tudo aquilo se transformava numa cómica narrativa surreal e a ideia de Morgan ganhava cada vez maior luz trágica e bem real. Quando seria o momento ideal? “Private Investigations estava quase a chegar ao fim e, num momento de suspanse, preparava-se para dar lugar à música seguinte: “Your latest trick”. Nem mais. Morgan sentia-se um joguete nas mãos de Stella. Juntou os pratos sujos no lava-loiça e fez café. Quando acabaram de beber café, olhou-a e tentou começar uma conversa. Pensamentos desconexos, raiva, frustração, pavor, ódio… deram lugar a um convite para dançar a próxima música, como tantas vezes fizera quando ainda eram só namorados. Ela abriu os olhos espantada, sorriu e disse – Porque não...? – Levantaram-se. Aproximaram-se e abraçaram-se. Enquanto os corpos se iam habituando ao ritmo da música, Stella trauteava a melodia e Morgan cantava a letra baixinho ao seu ouvido. Morgan aproveitou tudo o que pode: o aroma dos seus cabelos, o toque da sua mão na dele, o movimento do peito e do ventre apertados contra os seus e o encontro de pernas. Como podia andar a enganá-lo? Só podia ser da sua imaginação! Começou a sentir vontade de chorar no seu ombro e agonia… Pôs a mão à barriga suavemente, tocou na dela, imaginando que o filho imaginário do suposto outro era seu e meteu descansadamente a mão no bolso do avental. Pensava na letra da música… Não sei como isto aconteceu… aconteceu tudo tão rapidamente… Só parou quando sentiu a pasta quente e escorregadia descer-lhe pelas mãos e empapar-lhe as pernas, até ouvir cair os pingos encarnados que se confundiram com o mesmo tapete onde tinha chorado minutos antes, e viu-lhe os olhos fora de órbita em espanto mortal. Continuou agarrado a ela a dançar até a música acabar.