domingo, 31 de janeiro de 2010

As cores da cegueira

Ana Luísa tinha nascido cega. Helena, sua mãe, sentiu como é óbvio um enorme desgosto. Não pelas suas próprias expectativas depositadas numa criança que nem sequer quisera saber o sexo para ser surpresa, senão pela forte privação que a filha iria viver toda a sua existência. Então e as cores, as pessoas, a beleza… o perigo… as estradas cheias de carros, as pessoas com más intenções... O campo de defesa de Ana Luísa estaria limitado à extensão das suas mãos, ou no máximo à terrível bengala da pena dos outros. Depois de falar com o médico especialista sobre o que ocorrera e o que poderia ou não, neste caso não, ser feito, Helena afirmou-se forte e determinadamente – Há de ser uma criança como as outras. Estimularei os outros sentidos de tal forma que o seu mundo nunca será escuro. – Levou-a para casa embrulhada na manta branca que ela nunca viria, a sua primeira manta, reparou nos grandes e belos olhos abertos castanhos acinzentados com laivos de mel e chorou. Os olhos da criança moviam-se muito. Helena apercebeu-se que teria de estimular o tacto, a audição e o olfacto. Mal chegou a casa, foi directamente ao gira-discos e pôs as catorze valsas de Chopin a tocar suavemente. Que música alegre e inspirada! Pegou na recém-nascida ao colo e começou a dançar lentamente e a murmurar ao som da música enquanto lhe acariciava as mãos. E todos os dias dos primeiros dias de Ana Luísa, pôs Chopin a tocar. Depois veio Bethoven e Mozart. Falava com ela o tempo todo em voz de adulta e contava-lhe passo por passo o que ia fazendo com o seu corpo ou enquanto tratava das suas coisas. Cantava para ela canções inventadas que contavam as cores céu, da terra, do mar, da pele, das suas roupas… Decidiu logo que a vestiria com muita cor, alegre, suave como o choramingar dela. Esqueceu parte do enxoval branco neutro que havia comprado e encomendou na loja para crianças mais próxima de sua casa as cores do arco-íris. Ana Luísa cresceu calma, agitando os bracinhos sempre em busca de contacto físico com a realidade. Uma vez que Helena tinha deixado de trabalhar por receber uma herança da sua tia-avó que não tinha filhos, o tempo do mundo era todo seu. Bolas de borracha de levar à boca com diferentes saliências, rocas com diferentes sons, bonecos de materiais estimulantes, tudo o que pudesse apelar à sensorialidade, e sempre música a tocar. Conseguia fazê-la rir com cócegas nos pés e mais tarde mover-se para a frente e para trás seguindo a música. O tempo foi passando e as visitas não estranhavam a criança. Entravam em pezinhos de lã para não a assustar e iam-se aproximando aos poucos, conforme Helena lhes tinha pedido. Tratavam-na como uma adulta. Tocavam-lhe na mão e apresentavam-se em tom doce e suave e, então, pegavam-na ao colo. Aos dois anos, Luísa já parecia sentir alguma frustração. A mãe teve de arredar todos os móveis e cobriu a casa de fofas alcatifas. Queria gatinhar e levantar-se livre e tinha a presença da mãe sempre por trás pronta a ampará-la. Helena decidiu que antes de ir para uma escola de cegos, teria de aprender a circular pela casa sem se magoar, então, levava-a pelas mãos ora fazendo-as tocar na mobília, numa parede seguindo pelo friso de madeira e depois de volta pela parede oposta. Dizia-lhe nos infinitos percursos repetidos – Aqui é o teu quarto, a cama ao fundo, o armário na parede da frente e do outro lado os brinquedos. Sais, estás no corredor. Para este lado temos, aqui, a casa-de-banho. – E seguia sempre pelo friso até à ombreira. – Aqui é o quarto da mãe… Aqui é a sala... E aqui é a cozinha… A porta da rua está em frente, mas está trancada. – E tudo de volta para trás. Cada coisa tinha o seu lugar e não deveria mudar para que Luísa soubesse sempre onde encontrar cada objecto e saber com que o que contar ao andar pela casa. De vez em quando, lá havia um choque, um tombo, um desespero seguido de choro sofrido, mas rapidamente se punha de pé e tacteava de novo o ambiente e recuperava a confiança. Seis meses antes de Luísa entrar para a escola, tinha cinco anos, Helena quis-lhe ensinar as cores. Já haviam tido várias conversas sobre como era o mundo para cada uma delas e cada vez que Ana Luísa perguntava – Como é, mãe? – ficava a aflição de dizer a cor de determinado objecto. Decidiu que descobriria forma de lhe dar a conhecer as cores, nem que fosse por sensações semelhantes. Este pensamento levou-a a lembrar-se de um livro das suas aulas de desenho no liceu e foi buscá-lo com a criança pela mão. – Estamos no lugar dos livros. Os livros têm muitas coisas interessantes e bonitas para aprender, mas os teus vão ser ainda melhores que estes, vais poder lê-los com as mãos! – Tirou o livro para fora, mas nem precisou de o abrir para se lembrar da matéria da “temperatura das cores”. Cores quentes e cores frias. O suficiente! Mas como lhe iria explicar a sensação visual que uma cor transmite? Olhou vagamente para o lado procurando respostas quando encontrou a um canto esquecido desde o Inverno passado o aquecedor a óleo. Sentou a criança no sofá e pediu-lhe que ficasse quieta – Vou mostrar-te uma coisa muito especial! Vais conhecer um bocadinho do meu mundo que passará a pertencer ao teu… – Arrastou o aquecedor chiando e ligou-o à ficha eléctrica. Começou – As cores que a mãe vê são reflexos de luz absorvidos pelos nossos olhos, quando estes podem ver. O mar, por exemplo é profundo, tem correntes e é frio. – Colocou-lhe a mão no aquecedor de metal ainda gelado – o mar é azul. O mar é frio. À medida que o aquecedor ia aquecendo lentamente, repetiu o exemplo – os campos de relva bicuda e fofa recebem algum calor do sol e da terra. A relva é verde. – Pôs-lhe a mão no aquecedor ligeiramente menos frio – O verde também é frio, mas menos que o azul. O verde é frio – Quando o aquecedor já estava morno, continuou – a areia é fina e rugosa, feita de pequenos grãos que são aquecidos pelo sol; a areia é amarela. – voltou a por-lhe as mãos no aquecedor – A areia é morna. A areia é amarela. – Seguiu pelo laranja dando o exemplo da manta quentinha cor-de-laranja que normalmente aquecia Ana Luísa enquanto a mãe fazia o jantar e depois passou ao encarnado – Lá ao longe, o sol é uma grande bola vermelha de fogo que aquece os nossos dias e os ilumina. É preciso ter cuidado com o sol. – Mão no aquecedor bem quentinho – O sol é quente. O sol é vermelho! – As duas radiantes passavam as mãos ao de leve pelo aquecedor – Ui! Ui! O vermelho é quente! – Cuidado com o sol! – Ria a Luizinha – Estou desejosa de saber a cor da minha saia de folhos tão elegantes..! Helena levantou-se e foi buscar uma travessa de framboesas com chantilly.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Numa noite de temporal

A voz do velho ecoa do monte ao chamar as cabras. O decrépito assobio do vento intensifica o chamamento e as árvores avisam os animais balançando ferozmente. Vêm aí chuva forte de Inverno e pode ser que chova toda a noite. Pastor, vem aí um carrascal... – diz o velho ao cão. O suposto aparecer do grandioso pôr-do-sol que é razão de contemplação, tornou-se num espesso disfarce pardacento e ouvem-se os badalos a aproximarem-se no escuro que não tarda. Por entre massa opaca de nuvens, umas nodulosas, outras planas e cerradas, tímidas e esparsas abertas de breves incandescências loiras e ruivas quase não se notam naquele desfile de fatiotas cinzentas tão iguais. O velho solta o Pastor que a ladrar em redomas às cabras vai morder os calcanhares às patas das mais teimosas. Todas fechadas em camas limpas, as cabras ficam na sua impaciência assustada. Mais uns fortes assobios triplicados pelo soar dos desfiladeiros das montanhas em que bate o vento e o simples monte fica sozinho, por fim, isolado até ao amanhecer. Mas se tudo parece calmo ao lume do velho solitário, a noite o velho engana. Lá fora, os assobios continuam para baforadas agudas tremelicantes e infindáveis e inspirações de gigante semi-adormecido. A chuva por fim cai brutal e, em casa do velho, ouvem-se as goteiras de metal feitas instrumento musical desconcertado. Ele pega no pedaço de carne feito ao lume e trinca-o descansado. Antes da segunda trinca, levanta-se para ir pôr os alguidares de plástico e metal no chão onde caiem ribeirinhos dentro de casa. Enquanto volta a comer, serve-se de vinho tinto e liga o rádio inutilmente, a chuva roubou a frequência para a sua ópera a meias com o soprano vento. Por volta das dez da noite, e depois de meia garrafa bebida, o velho sente-se inquieto. Pergunta-se a si próprio como pode o vento e a chuva incomodar um homem como ele? A pele trigueira enrugada, as mãos calejadas, as calças ruças e os sapatos sujos comprovam-no. Ele é um homem do campo, sempre foi. Mas naquela noite, sente uma espécie de pavor que o leva a trancar a porta e depois a destrancá-la para ir rapidamente buscar o capote para fechar as portadas das janelas por fora. O ar está gelado. Entra e esfrega as mãos por cima do lume, tão próximo que quase se queima não fossem as mãos estarem molhadas. Decide ler. Enquanto não mergulha na história, pergunta-se se as cabras estarão bem… E aí apercebe-se de que se os animais do campo se assustam com o temporal, porque não há de ele, bicho ser humano do campo sentir o mesmo? Já não há heróis! – recita bem alto aliviado mas, perante o prazer que o tornedó impôs, depois daquela voz que se ergueu confiante, o lamaçal e a ira dos céus o calaram. Resolve continuar a ler. Mais uns minutos e oscila entre ir buscar o Pastor para o proteger a si ou quedar-se quieto em casa. Mais uns momentos de solidão no calor do carvão contrastante com a pedra fria das paredes e começa a adormecer tapado dos tornozelos às orelhas com uma manta xadreza oferecida pela irmã. Começa vagamente a mexer-se e a sonhar com a irmã, com as ruas do Porto… da última vez que lá foi estava calor, era pleno Agosto… um sol de braseiro… No dia seguinte, foram encontrá-lo ardido queimado morto por uma faísca que tão bem o aquecia e que saiu do carvão, do lume que se foi espalhando por cima dos tapetes e da manta. Provavelmente não sofreu, o fumo deve tê-lo intoxicado primeiro, numa casota tão pequena destas – reportaram as autoridades à irmã e ao cunhado acabados de chegar da cidade ao monte onde continuava a chover. Ele bem que se sentia inquieto com o vento e a chuva… mas foi-se ao contrário.

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Tu

Tu. Tu és tudo o que tenho. Quatro paredes, uma canção e tu… Tu, tu que mudaste a minha vida, trouxeste-me até ao encontro comigo própria. Tu salvaste a minha alma e deste-lhe sonho e objectivo. Tu és a voz do meu sonho. Tu és o que procurei durante anos a fio… Como não te ver se sempre estiveste aqui? Tu que brotas de mim, tu que és arte viva que pinta um quadro e compõe uma melodia para olhos e letras seduzir. Ah tu… Tu que fazes promessas que cumpres antes mesmo de eu ter tempo de acreditar, e tu que falas por mim, pelo meu amor, e em nome do mundo, em todas as línguas e por muitas mãos. A ti, a ti não te esqueço por muito que a vida peça de mim, tu és a vida que eu tenho para dar, a luz no meu olhar. Tu és a minha sede e a fonte que me dá de beber, um lago profundo em tons de verde avivado por uma cascata de água morna, onde me banho nos dias de frio ou calor. Tu acendes-me e apagas-me a mente, deixando-me ser eu, eu liberta. Tu és a pausa que eu faço ao exterior que corre em turbilhão, a voz que se ergue para a paz aclamar em bandeiras que um dia vou levantar para o mundo ver. És o meu canto e o meu caminho, és a alma de cada um de nós aberta para quem a quiser dar a ler. Tu és minha. Tu és de quem a deixar libertar. Tu, tu minha escrita, és o sabor do alimento que me dá vida, és o que chamam de dom, e és dever, és tudo aquilo que tenho para oferecer, em breves notas que dão à minha alma de beber perfumes puros como os da gente que passa sem me ver. Tu conheces-me melhor que eu a mim própria. Há em ti a chave para a maior e mais pesada e mais bela porta que há no meu ser, e este hino a ti, escrita, é mais uma prova de tudo o que fazes por mim.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

São fases

São fases como o dia e a noite, como o Inverno e o Verão. Mas tarda o Verão e o Inverno bate à porta todas as semanas. Os raios de luz, meros reflexos no vidro que se esbatem ao entrarem em minha casa, dão forma às poeiras que bailam e pairam sem outro sentido que a vontade do sol, esse breve sol de Inverno. Pelo menos há sol. São fases. E esbate-se a luz e vem a noite, uma nova fase, uma nova fase de lua nova. Esta noite não há luar, dizia o título de um livro, mas esta noite há estrelas que deixam no meu olhar o brilho da fase seguinte. Que seja melhor… Mas e são só duas as fases? Só preto e branco, só nu e cru? Hão-de existir intermédios! Nuances, cosidos e assados, vestidos elegantemente em trajes do antigamente, puxados em carroças fechadas conduzidas por um senhor vestido de negro e de cartola encabeçada. Mas e quem vai lá dentro? Vai o rei? Não, que a carroça não tem brocados de ouro. E, daí talvez vá o rei, o rei leitor que me leva a balançar uma vénia de esperança pelo meio-tom, pelo meio-termo, pela sua autorização para subir os cinquenta mil degraus até ver o verão, por fim chegar, e se for caso disso, me dê alento para ainda chegar a tempo de ver a Primavera surgir num botão de flor temerosamente revelado, e aí outra fase, que não as habituais duas, monótonas e distantes. Não deixem que se acabe a Primavera! Não a tomem num só sol quente de Verão! Não deixem o Outono só vir no Inverno, que as folhas pardas e douradas merecem ter o seu tempo, o seu tempo só para si, para o seu espectáculo a solo! Deixem a vida ter quatro estações. Não levem as crianças, nem os jovens, nem os adultos embora! Deixem-nos chegar à estação final. E às quatro menos um quarto chega o próximo comboio, mas não vai a lado nenhum com as crianças, os jovens e os adultos, leva os seniores a dar um passeio pela meia estação, um reviver de outros tempos com novas histórias para contar. Nada de luzes brancas e lúcidas ao fundo do túnel escuro da morte! Um reviver real, não lembrado; real, digno de príncipes, duques e condessas, de beijos trocados num qualquer apeadeiro na promessa de um outro beijo na manhã do devir. E os nossos avós lá vão mas voltam, cheios de pequenas flores brancas nos cabelos, quais puros incautos que são, e trazem também pedaços de uma terra nova onde há diferentes sentimentos dos quais nos habituámos a viver, todos humanos, feitos da mesma matéria e das mesmas lágrimas de sal. Trazem as luas como recordação e as cantigas e as histórias à volta do lume nos sacos de pano quentes como o pão, e nós devolvemos-lhes o espanto que merece a ruga da sabedoria e o franzir do conhecimento de quem já viu muitas guerras e que sabe que o Homem não muda, mas que pode mudar, tal como as poucas fases em que vivia há linhas atrás, há quinhentas e vinte palavras atrás. Graças ao rei que vai na carruagem, aos cinquenta mil degraus que subi, e às gerações que vivi e irei viver, conheço agora uma vida a cores, um banquete, talvez uma viagem de quatro estações. Até que um dia o sol se apague e não haja lua, nem estrelas, nem pão quente, nem lume para me aquecer.

sábado, 23 de janeiro de 2010

Manifesto Ecológico / Espiritual

É chegada a tua hora.

Chama-te o vento em fúria do alto das árvores.

Chama-te a maré ao nascer de um novo dia.

Sentes a vida a chorar baixinho? São as crianças do futuro que te querem ensinar.

Ouves o pulsar da Terra?

À noite, quando fechas os olhos e miras o infinito, é ao grande plano da vida que devolves o teu respirar. E, Homem, ages como rei no seu jardim!

Arrastas o teu manto enquanto passeias por grandes sonhos e estendes a mão às flores que apanhas para oferecer. Descobres as leis da Natureza e um dia crias as tecnologias e, sim, és mestre do presente, assim gostas de pensar, mas se proclamas vitória, observa bem porque tens sangue na tua espada, cavaleiro.

E os titãs de outro tempo, o fogo ardente e a força das marés unem-se e vêm para te gritar que este reino foi tomado há muito tempo atrás! Esta velha casa de família luta para sobreviver há mais tempo do que tens memória!

Tu, geração do presente, habitante do planeta Terra. Chama-te a urgência da vida!

Tu que vives rodeado de coelhos e cartolas, coisas e mais coisas com mil botões e cliques e mais luzes, coisas que vêm e vão, que são milagres num dia e no outro apenas restos da tua imaginação. E perguntas ao caos porque não as aceita se para ti morreram!?!

Morressem? Mas como se a vida ainda agora começou? É chegada a era em que há vida depois da morte. O futuro passa por ti e tu fechas os olhos. Então tu que és artista da evolção, não ouves o chamamento da tua Mãe? O que dirão os teus descendentes? Recicla a tua mente, geração do presente. Fazes do teu corpo arte e dás voltas ao mundo em defesa de ideais. Sai agora do comezinho e liga-te ao futuro, abraça a sobrevivência do teu planeta natal. Levanta-te e muda o teu destino! Tu mesmo o dizes: nada se perde, tudo se transforma.

É preciso fazer mais. É hora de saber melhor.

Vai e agarra as forças da destruição, toma rédeas, vira tripas coração!

Alimenta a seiva que corre no chão com a voz da tua coragem!

Grita ao universo que estás do lado da evolução.

Geração do presente, planta hoje as raízes das grandes árvores do teu sonho e recebe agora o sorriso dos teus filhos.

Vive hoje o sonho de amanhã.

Defende o teu planeta, geração do presente, pois nele habita a História das vidas que ainda estão por vir.

Chant me on

Chant me on

river of beauty

trigger my fears

open the road

for reality to show

clear up my sight

so that I can fly

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

O monólogo da laranjeira ao Homem

Uma história, naturalmente.

Se todas as histórias começassem com um era uma vez, o que seria dos grandes amores, dos romances, que despertam com o curto olhar trocado numa caminhada pelo jardim? Mas se todos os amores nascessem ao primeiro olhar, para onde iriam as palavras?

E se as palavras da história que me contas fossem as flores e plantas de um jardim, trevos de três e quatro folhas ou amores-perfeitos; o pé de flor que precisa do seu tempo para germinar e crescer, sem que tu o vejas passar; também eu guardo nas minhas raízes momentos invisíveis que querem na minha evolução brotar. A laranjeira, que antes que possas apreciar a flor branca e provar da laranja, não sei mais do que existir num molho de ramos atado a uma cana madura, e mesmo que não encha os teus sentidos, estou viva e isso basta-me.

Não vou partir à descoberta, como tu. A mim, chega-me o mundo que preciso de ter para ser tudo o que me é proposto ser. Assim, se for largada distraidamente na terra quente durante a Primavera, se me deres da água fresca que vais beber, sol, e talvez a irmã cana madura para me guardar dos ventos do sul, serei a mais bela árvore que alguma vez sonhaste ver. Não te desiludirei, sabes, não faz parte da minha natureza. E eu entendo assim o mundo que para ti é cheio de mistérios.

E se o vento me quer a olhar o norte, todos os dias até que esta seiva adormeça, porque chorarei eu por não conhecer o sul, se o tempo me oferece daqui tanto para ver? E os pássaros que voam e vão, alguns não voltam, fazem alegres os meus dias com canções a que a minha voz não soa, e eu retribuo a dançar devagar. Gerações inteiras a passar… Isso dá-me esperança. Talvez um dia venha a ter grandes ramos para te abraçar. Não penses tu que não tenho o espírito aceso em mim. Não será a viçosidade dos meus diferentes tons e o respirar do meu aroma a forma que encontrei para te dizer que estou vivo, que existo? E não serão os meus frutos um sinal de vontade própria? Só terás de compreender que eu, eu só quero existir.

Os pássaros, esses são como tu. Têm asas. Ficaram num tempo onde a natureza que os move, a cada mudança de estação, é aquela que não me move a mim. E a tua, que não enche nem lagos, nem mares, nem tão pouco faz o dia e a noite aparecer, é a mesma, só que diferente. Tu indagas para que lado devem os teus ramos crescer. Tu gritas mil vezes ao céu, de mãos abertas, porque razão foi o vento do norte impedir-te de avistar também o sul! Tu mal conheces o mundo e fazes planos para lá viver. É a tua forma de existir. E eu, quando vir os navios ao fundo do horizonte vou saber que és tu, na tua viagem pela vida. E eu, quando te vir regar-me, vou saber que és tu, sem tão pouco adivinhar que vida vives para além da que me dás. Nisso somos iguais, vês?

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Ao encontro do desencontro

Hoje viste-me passar. Tu reconheces-me mas não sabes de onde. Cruzas-te comigo no Chiado umas duas ou três vezes, tentando adivinhar de onde me conheces. Serei amiga dos teus amigos, uma aluna da tua escola, servirei nalgum bar do Bairro Alto a que costumes ir? Ficas na dúvida se a razão de me reconheceres é por ser parecida com alguém que conheces. Alguém do teu passado. Alguém do teu futuro… Lembras-te de uma teoria antiga que ainda hoje tem cor. É de um branco intenso que tem um sentido imenso para o teu olhar. Mas não te atreves a pensar. Nem tão pouco a perguntar “Conheço-te de algum lugar?”, pareceria uma forma banal de te aproximares. Precisas que as ruas me tragam de volta ao teu encontro para a tua memória ter o tempo de recordar. E assim vais-te habituando aos meus contornos, ao meu andar. E tudo começa a fazer sentido, torno-me familiar. Sorris sempre que me vês passar e eu não sorrio de volta. Ando perdida, ou demasiado comigo mesma, pensas tu, por esses caminhos dos afazeres e das relações complicadas que assaltam o ser. Resolves pensar nas horas a que nos costumamos cruzar, e que um dia eu hei de reparar em ti e dar-te a reposta que procuras, que te conheço também de algum lugar e que até sei de onde. Notas que estou naquele lugar à hora da manhã cedo, de passagem para baixo, aos fins-de-semana. Pões-te a pensar, mas não te atreverias a seguir-me! Pensas no que podes fazer a seguir. Resolves passar uma manhã no café, junto a Fernando Pessoa e fitá-lo, procurando em ti palavras sábias para o que estás a sentir à espera de me veres passar, quando me vês chegar. Sento-me. Espero cinco minutos até que me venham perguntar o que quero tomar. Peço uma água e um café, um café como aquele que já bebeste, e pedes outro. Notas que oiço a tua voz e passo de soslaio o olhar por ti. Nenhuma reacção se dá, nem um pequeno hesitar ou reflectir. Já demasiado intrigado com a tua necessidade de me observares e de me falares, vês-me retirar da carteira um pequeno bloco de notas e uma caneta de tinta permanente, enquanto bebo em pequenos golos o café quente. Vês-me a fitar o papel branco e a mover a caneta na mão, uma lista de afazeres pensas tu, e não te enganas. Acabo o café e redijo qualquer coisa breve na folha que arranco. Guardo a caneta e o bloco novamente na carteira e espero pelo empregado para lhe pagar e com ele trocar umas curtas palavras. Vês-me levantar e pegar na água ainda fechada. Qual não é a tua surpresa quando o mesmo empregado se dirige a ti com a seguinte mensagem “Uma senhora pediu que lhe entregasse isto”. O teu corpo aquece e sentes a ansiedade e a indagação transformar-se em rubor. Manténs o bilhetinho aquecido na mão, receoso do que possas encontrar e acalmas quando pensas com optimismo que pode ser o meu número de telefone. Desdobras calmamente o papel para ver uma folha onde está pintada em aguarela uma cadeira e uma mesa com vista para o mar e onde lês impresso o título “Un petit mot de Joana”. Hesitas antes de ler quais são as pequenas palavras que Joana te escreveu. Sentes a força arrebatadora do destino a acontecer contigo lá dentro, qual personagem na teia da aleatoriedade. Com os olhos a vibrar, pensas que só me poderás responder caso me voltes a ver. Será que te estou a dizer para não te perseguir, para te esquecer? Ou será uma pista para um próximo encontro. Agora confiante, baixas os olhos para o que está pintado a preto naquele desenho. Lês calmamente mas o teu coração dispara apertando-se contra o peito. Fui tua mulher noutra vida. Daí parecer-te familiar. Mas nesta vida não estamos destinados. Aprendemos juntos tudo o que era preciso aprender. Have a nice life! E assino com um coração. De repente és inundado por uma torrente de energia que se liberta, deixando o teu corpo inteiramente fresco e sentes-te profundamente aliviado e compreendido. Compreendes a mensagem e aceita-la, não sem alguma nostalgia. Paras uns segundos para relaxar com a mente em vazio e o coração cheio de aceitação. A vida parece-te ter ganho um pouco mais de dimensão e sentido. Depois levantas-te apressado e segues a rua no sentido oposto daquele que me viste partir para nunca, nunca mais me voltares a ver, e tu já sabias disso.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Amor Cigano

Há dias assim. Sente-se vontade de abraçar, de sentir o suave corpo apertado contra o nosso, rir ao ouvido de alguém, tocar na pele e apreender toda a sua textura, mostrar na nossa mais frágil sensualidade a coesão da energia que transportamos dentro. Somos senhores do nada e do todo viemos. Para lá caminhamos. Há dias em que a música desperta memórias e nos transporta para sensações que já tivemos e traz desejos secretos. Nesse dia continuamos o sonho, voamos mais alto e voltamos a ser o que Deus preparou para nós. Há as crianças no passeio, os seus risos lembram vozes de golfinhos, a melodia dos pássaros soa a Primavera e sente-se melhor o odor das flores. Há dias em que a montanha lá ao longe cabe na palma das nossas mãos. Fundimo-nos com o sol, que só para nós explode em sorrisos, e guardamos o verde naquela paleta que mais tarde iremos usar. Traçamos projectos, sentimos calor, acreditamos na existência, respiramos fundo e agradecemos a experiência de estarmos vivos. Olhamos aquela pessoa que pensamos desconhecer com toda a intimidade e baixinho fazemos uma prece que ela irá agradecer. Respiro fundo e a luz brilha através das minhas pestanas, abre um arco-íris que surgiu só para mim. Para este espectáculo gostava de te convidar. Passa o vento do mar e oiço a gaivota, bandos de pássaros trazem para contar as viagens de outros tempos, com árvores a esvoaçar, os ninhos estão escondidos, não vá ninguém lá para os assustar. E tu, agraciado, espreitas um e vês ovos pintados, que um dia vão voar, desces e o bater dos teus pés no chão levanta poeira de ouro que desperta outro ser. Encontram-se a meio caminho, acordam em subir o monte, passam pelo lago que está calmo como a serenidade dessa tarde, não tivesses nada que fazer e ficavas ali até ao anoitecer. Passa um gato, preto, e outro branco, que parecem também dançar, molhas a cara, descalças-te, despes-te e prometes não olhar, a água está morna. Descobres que a água é feita de cristal e que os peixes são de ouro e de prata, e que dançam ao luar. Procuras ver de onde vem o som que se vai espalhando por todo o ar. Vem daquela copa, é de um pintassilgo que quer acasalar. Segues para cima e o frio está a chegar. Enterras os pés na terra e ao tirar trazes um visitante que cá cima vem espreitar, assustas-te e corres, mas cais e ris a doer. Chega a hora do abraço, leve e quente, que vem e te leva sempre a balançar, e finalmente um perfume inunda o teu viver, lembras-te que já te pertence, a tua memória sabe-o de cor, e pedes para nunca, nunca, o esquecer. Fica a promessa: amanhã pelos campos correr, começam junto da ribeira e o mundo vão percorrer.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Isto não é com certeza uma valsa. Isto não é salsa. Isto é desejo carnal, paixão, traição, entrega, retirada, possessão; tantas sílabas de sedução. Isto é tango! E não o confundam com milonga. Ninguém ganha, ninguém perde. Isto é um jogo. Um jogo que só se joga a dois. Isto é atracção. Íman macho, íman fêmea em acção. Isto é acção e coordenação. Troca de carícias, malabarismos, roça, roça, desejo e dor; desfalece, mas não cai! Isto é poder e esmorecer sem nunca perder o equilíbrio do instinto animal que une e separa troncos e mãos, que compassa pernas livres como dois amantes verdadeiros. Isto é a disputa por quem seduz e luta para não se entregar. Isto, senhores, é tango. Isto, senhores, é a vida!

Música Maestro!

Sentada no hall de entrada, esperei a tua chegada. Pedes perdão e eu não digo que não. Há na espera uma feroz fera que desespera e que ao ver-te se esquece da mera. Passou meia hora na tua demora. Saímos para o dia e damos com um gato que mia e com o sol que já vai alto. O teu sorriso é tão grande que tudo à nossa volta pára. Paira no ar dos contornos uma luz de ouro esbranquiçada que me leva a pensar que deveria ver sempre assim. Vamos de mão dada ao café dos poetas onde vais ler para mim sobre a queda de cometas. Eu levo uma folha em branco no qual escrevo este canto, sentada num banco com vista para uma arcada de pedra, tão antiga como aquela árvore cuja sombra nos fita. Dou por mim deitada ao teu lado a conversar sobre a arte da natureza, nas figuras humanas distintas que encontramos na nuvens e penso que sorte tenho que as vejas também. E começo a observar-te. O brilho dos teus olhos canta para mim como uma guitarra portuguesa que sorri à voz, e chega o piano, devagarinho, devagarinho. A voz tarda, está entretida a dançar num beijo suave e grande como o planeta onde caiu o cometa que já ninguém sabe onde foi parar, só sabe que não quer parar de querer dançar. Chama a voz que à guitarra faz falta, faz-lhe falta ter um beijo assim, tão doce e imenso. E ninguém se ofende se hoje chegar tarde, afinal a voz também precisa de inspiração. Continuamos por campos bravos para o próximo encontro, desta vez é a água fresca que desperta em rios e ribeiras que correm como os acordes na ponta dos dedos. Passam frescas as ventanias pelos meus cabelos e tu sente-os por entre as mãos. Há neste canto um senhor que nos inspira, dá-nos notas de troco para aquilo que não comprámos mas de que muito gostámos. Ele acena, parece chamar a voz. A voz entrelaçada na sua paixão, não faz caso, deixem que a guitarra também sabe cantar. E ela lá canta, canta contando uma longa história ora sentida, ora apressada, marcada pela vida que havia naquele planeta onde caiu o cometa. Levantam-se as vozes do povo que a tudo assistiu. Quem lá viveu é testemunha da dor, da loucura, das promessas, da beleza que não esqueceu, conta a guitarra. E nós, que vamos de passagem, temos memórias do que não vivemos sem tão pouco deixarem de ser verdades. E o amanhã, pergunto aos teus olhos. A guitarra responde, preciso de ti. E eu canto, canto no lugar da voz, cantando-te ao ouvido canções de sonhos e lugares que a minha imaginação conhece, e pego-te nas mãos e dançamos, e a guitarra observa e o piano também e eu quero levar-te lá. Deixamos para trás o café dos poetas e a história dos cometas, mas as nuvens vêm connosco e no teu olhar a música continua a tocar, a tocar, sem parar, sem parar. E o tempo passa a bailar por entre as emoções e as ruas e as estações. Já escolhemos o destino desta melodia. Esta noite, o teu olhar será música para os meus ouvidos e o meu cantar será dança para a tua alma tocar. E assim partimos rumo a casa, para à desgarrada fazermos da música amor.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Ó Dona Rosa

Houve em tempos uma mulher, um raio de uma mulher tempestuosa, de arranques de humor, variações de notas ora agudas ora graves – vozes de comando. Ora essa mulher possuía um botequim no Bairro Alto; isto na época das putas, dos bandidos, bandidos ainda os há, as putas foram-se e vieram as cabras; e a Dona Rosa, o diabo da mulher lá aguentou os tempos difíceis sempre com o mesmo temperamento de fazer cliente bêbedo piar fininho. As putas chamavam-lhe brejeira. Os bêbedos, patroa, e a bandidagem não se atrevia a roubar à sua porta, ou lá vinha palavrão, ora agudo ora grave, de acordar os vivos e os mortos e a guarda que descasava encostada às paredes, balde de água suja e vassourada da grossa. Chegou a expulsar ratos do porão ao pontapé e eles lá foram a chiar desnorteados, ora rumo à pia, ora para trás do balcão, ora finalmente para a rua libertos para o ar fresco mais fétido das ruas porcas que não eram lavadas senão pela chuva que não caia há duas semanas. As esquinas, a cheirar a urinol, povoadas de garrafas partidas que rolavam pelas ladeiras. “Aqui não é lugar para senhoras, vai que uma escorrega num caco e lá vai ruela abaixo de escantilhão, a roçar o cu na pedra escura.” Ficaram manchas da sanguinária no chão e no chinelo branco mais que sujo da Rosa, mas ninguém se atreveu a mexer-se durante o espectáculo, excepto algumas das mulheres, não senhoras, mulheres, operárias fabris amantes dos bêbedos, que levantaram os botins do chão para os pendurarem nos ladecos dos bancos. Também elas têm brio e sensibilidade, ora! E ainda se ouviu um gritinho ou dois de pavor. Mas a Dona Rosa, ó Rosa! A Rosa marafona, de braços gordos ao léu e rabo a transbordar da saia de varina em cetim, lançou rápidos olhares de viés furibundos a quem gemeu e lá disse: “Tás com dores? Deve ser da foda que mandaste naquela esquina há bocado!” “Mais vinho da casa! Que já que não se canta o fado, canta-se ao som do gargalo”, ouvia a Dona Rosa, a Rosa, casada, separada, farta da inércia de alcoólico do Fernandes, e viúva, tinha quatro filhos matulões, todos homens, entre os quinze e os vinte e três anos. Armadores, pescadores, feirantes, ardinas, trambiqueiros eram o orgulho da mulher que todas as tardes, lá para as sete, sete e meia, ainda de dia nos dias mais longos do ano, abria as portas do boteco para aturar os mesmos de sempre, dia após dia, anos a fio, todos com o mesmo problema do seu antigo Fernandes. Uns iam morrendo, cirróticos, pneumónicos, outros eram perseguidos e presos e desapareciam, e ela lá se queixava, ou de os aturar ou de lhe faltarem os tostanitos que lá costumavam deixar. “É que já nem às cartas se pode jogar!” Ai esta Lisboa… “Tempos duros”, queixava-se a Rosa e todos assentiam com um gesto de cabeça de caneca na boca. Um dia, a Rosa não abriu a horas. Foi esperar o seu mais novo vir das Berlengas, à beira-rio. Um tumulto aguardava-a. “Ai… Não podem viver sem a Rosa, querem ver?”, zangou-se ela rindo. A Rosa, por debaixo daquela rijeza até sabia ser generosa. Quando o filho lhe trazia tremoços do Alentejo nas paragens da travessia, ela oferecia-os a quem bebesse cerveja. Um dia, o Manel das Botas, o sapateiro, levou um amigo que sabia cantar o fado. “Aqui não há fado, que não tenho carcanhol para pagar a pássaros!” ruía a Rosa. “Este chilreia de graça, o Rosa! Traz-lhe um jarro de vinho, que hoje pago eu!” Eis que o fadista cantou e cantou e deixou os ébrios de lágrimas a escorrerem pela face. Beberam e brindaram e beberam e pediram sempre mais uma musiquinha enquanto a voz e o sentimento do fadista aqueciam ao ritmo das goleadas no vinho carrascão. A Rosa abespinhada apercebeu-se do potencial de negócio que para ali vinha. Um fadista sério e sóbrio leva dinheiro, um fadista que já vem bem aviado, só pede mais umas canecas. “O Zé Fontes! Passa cá na sexta-feira! Levas outro jarro de vinho do bom cá da casa!” Ah Rosa, Rosa Maria Ermelinda Natércia José, tu que vieste de burro, em garota, desde os montes dos arrabaldes de Lisboa, estás a começar a fazer daqui uma boa coisa, matutou. Durante três anos, o Zé Fontes lá apareceu de quando em quando e cantou e chamou clientela da rua com os seus fados de Coimbra, e depois lá inovou e começou a cantar os novos fadistas lisboetas, até que a Rosa viu que o lucro era incerto e lhe propôs: “O Zé, vens cá às quartas, sextas e sábados e dou-te parte das noites, mas olha que é pouco! Que dizes, velho?” “Oh-oh”, respondeu-lhe o Zé, e assim nasceu a primeira casa de fados do Bairro Alto, há muito tempo atrás, onde se passou a cantar o fado vadio. Por isso, se virem um dono de boteco, numa casa de fados de porta aberta, com ar sisudo e fanfarrão, imaginem se não pode ser um dos descendentes da Dona Rosa ou apenas alguém que sabe a sua história e a guarda na memória.

Alguém que leu este texto e que leu o Carteiro de Pablo Neruda, apontou que a caracterização da minha Rosa era muito semelhante à da Rosa do outro livro. Cabe-me dizer que é pura coincidência, pois infelizmente nunca li tal livro. Mas hei de ler.

Saber a mar

“Se queres aprender a rezar, vai para o mar.” Provérbio

Sei de cor a cor do teu nome. Desenhei-o, escrevendo-o vezes sem conta em letras redondas, numa letra que só quem escreveu sabe ler, nas linhas do horizonte, na pauta das ondas a quebrar e da maré a vazar e a encher, numa vela imaginária que cacei hoje e ontem para amanhã não te esquecer quando acordar. Dei nós que fiz e desfiz e voltei a fazer para uma manta de retalhos que me vai aquecer nas horas da espera para te ver... Dou-te poemas de amor que são gotas de um oceano que na noite escura mergulham em turbilhão nas notas de um grito de espuma que me leva a navegar além do vento e da dor. Ao longe, outras paisagens suspiram, balançando entre mim e a sombra tua já ida com o passar do navio que partiu para novas margens atracar. E neste mar em que te perdeste quando te perdi, e no sol e sal que eu quero de volta para me sentar na areia fina e sentir nas minhas mãos como em tempos a ti, não há pirata que descubra nas ilhas da saudade vestígios de que sofreste quando te vi partir. Há-de vir um mar chão capaz de dobrar esta tormenta que faz o teu nome pairar como neblina cerrada no céu da minha solidão. E depois da sétima onda, não restará gaivota em terra ou marinheiro perdido com medo do castigo que os audazes levam do mar e, quem sabe, te chegue a mensagem que há muito embarquei na garrafa da esperança de te reencontrar e contigo ficar. O teu nome, o teu nome é azul. De um azul tão cristalino como os mares do sul. E eu… Eu só quero ser o verde que te espera no fundo de uma planície, no topo de uma montanha, a cada entardecer.