quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Uma questão de minutos

NOTA: Antes de começar, o ideal será preparar as seguintes músicas de Dire Straits: Private Investigations e Your latest trick.


Depois de dias a fio a ver Stella entrar rubra e cintilante em casa, um dos quais abraçada a um ramo de flores, que afirmou ter sido um presente dos colegas de trabalho por ter sido promovida, ao que Morgan não acreditou porque, num mísero restaurante de estrada, não se recebe outra promoção que piropos e uma gorjeta de cinco dólares, além de que não vinha com cartão; e ao vê-la sair de casa para o trabalho quase a flutuar, deixando um aroma qualquer desconhecido e mais refinado que as colónias que costumava usar em dias normais no ar; e mais os longos silêncios à hora de jantar, sempre apressada para lavar a loiça e ir-se deitar… sempre antes dele… e não aguentou mais. Naquele dia, chegou a casa e, antes de mais, pôs o álbum On the Night, ao vivo, de Dire Straits, a tocar na faixa cinco: Private Investigations… Play. A multidão gritou-lhe aos ouvidos durante nove segundos. Fechou o CD e pousou-o. Ergueu-se e abandonou lentamente a aparelhagem, dirigindo-se para o centro da sala e antevendo, supondo o final de aquilo tudo … Deixou cair os braços pesados com o rosto cabisbaixo e, em desânimo, sentou-se num banco de apoio para os pés. Baixou a cabeça pendurada entre as pernas e chorou um minuto… Soluçou para dentro, vendo as lágrimas mancharem o tapete encarnado, como o fio de onde nasce um rio, um rio que morre para o mar; o mesmo minuto que introduzia a música, triste e melancólica; tudo por julgar ter razões de desconfiança daquela que era e tinha sido o único amor da sua vida. Doía-lhe a sua felicidade egoísta, sem razões aparentes que o incluíssem, semana após semana, sem partilha, moldada em segredos como os risos de crianças divertidas com alguma partida, escondidas atrás de uma árvore centenária. E esses risos ecoaram na sua cabeça… Olhou em volta e, envergonhado pela sua posição de cobarde, levantou-se de repente, mas sentiu o sangue subir-lhe à cabeça depressa, depressa demais, e quase esmoreceu. Mas no mesmo momento em que se preparava para se abandonar à frustração e deixar-se cair no chão, ouviu, bem alto, os gritos da multidão a encorajarem-no a dirigir-se ao quarto, a chamarem pela raiva da sua coragem. Esfregou as lágrimas do chão como se apagasse uma beata suja e preparou-se para subir pesadamente as escadas da casa pré-fabricada de madeira. Ouviu o ranger vagaroso, suplicante, do chão. Suplicava-lhe para desistir de ir mexer nas coisas de Stella, para se aguentar firme na sua confiança. Mas degrau a degrau, passo a passo, as vozes chamavam-no cada vez mais alto e, na sua mente, formavam-se imagens de Stella a ler o bilhetinho que acompanhava as flores: Adorei a noite passada. Sê minha. Imagens de Stella… a passear de mãos dadas no ar, a dar a dar, e a rir, a levitar sobre os relvados de um qualquer parque; carícias trocadas num café longínquo à hora de almoço; cabelos a esvoaçarem ao vento no carro de outro homem; promessas trocadas para largar tudo e partir rumo ao México, Havai, Canadá… com o seu rico amante cliente do restaurante ou, quem sabe, até com o fruto de ambos já na barriga. Que imagem terrífica…! Era já tarde demais. Para ele, o jogo tinha começado. E tinha de acabar. Toda aquela suposta informação confidencial de Stellla iria cair nas suas mãos, como pétalas soltas desfalecidas. Entrou no quarto e começou por olhar em volta sem conseguir pensar por onde começar. O desespero tolhia-lhe o espírito. Encontrava-se entre a porta e a mesinha de cabeceira dela. Abriu devagarinho a primeira gaveta, como se ela pudesse ouvir. Uma fotografia dos seus pais em novos e um terço. Abriu com maior vigor a segunda: uma agenda de telefones que folheou em vão. A terceira, vazia. Dirigiu-se ao armário dela. Abriu a porta de correr com violência fazendo-a voltar para trás e voltou a empurrá-la com igual força mas, desta vez, travou-a com a mão. Começou a atirar pelo ar as caixas de sapatos que abria. Nada. Só papéis de jornal que serviam de formas. Chegou a abrir as folhas de jornal e pista nenhuma encontrou. A tensão aumentava. Limpou a testa. Desceu e foi direito ao escritório. Vasculhou as duas mesas com papéis empilhados e deixou-os esfolheados como cartas de jogar. Passou um por um, um por um, dos seus dias naquela grande agenda, mas era óbvio que nada iria lá encontrar. Frustrado e irritado, sublimou a sua ira e teve uma ideia suave, romântica, que nada dava a entender o que se havia passado. Voltou a empilhar os papéis, fechou as gavetas, guardou a agenda, subiu ao quarto e fez das folhas de jornal novamente bolas que pôs dentro dos sapatos. Já na cozinha, abriu o livro de receitas em Fevereiro, mês dos namorados, e lá estava. Procurou cogumelos frescos, courgettes, alho francês, compota de tomate e gengibre, e pimentos para um salteado. Começou por cortar vigorosamente os legumes um a um, contendo a raiva numa linha de equilíbrio ténue para não cortar um dedo, por muito que lhe apetecesse. Tirou do frigorífico massa crua e queijo de cabra, e espinafres em folhas do congelador. Cortou alho e passou-o em azeite com os espinafres. Compôs uma bela lasanha de espinafres e queijo de cabra que deixou no forno a cozinhar. Enquanto continuava a cortar os legumes, ouviu a chave a rodar, a porta a abrir, e sentiu o coração disparar acompanhado de uma náusea. Stella não estranhou vê-lo na cozinha, nem ao whisky que entretanto lhe apetecera. Espreitando da entrada, deu-lhe um breve olá, leve e perfumado, acompanhado de um sorriso tímido, e logo desapareceu para pousar o casaco no bengaleiro – Quanto tempo falta para o jantar? – Perguntou – Tenho tempo para um duche? – Ele bramiu que sim. Tudo acontecia na sua cabeça. Como iria começar a conversa? O que lhe diria? Sei que me andas a trair? Já sei de tudo. Quem te ofereceu esse perfume caro que não tens dinheiro para comprar? Minutos depois (pareceu-lhe uma eternidade), Stella estava fresca e bem-disposta, sentada na mesa da cozinha, de vestido novo, a olhar para os movimentos dele sem adivinhar a sua desconfiança e fúria, nem a discussão que ele se preparava para ter. Riu alto quando ele se queimou ao tocar na pega do forno eléctrico com a mão e isso deixou-o extremamente irritado. Disfarçou. Deu um longo golo no whisky e passou a mão por água. Ela entretinha-se a olhar muda como uma criança que antes falava e que, com um susto, perdeu o piar. Em breves momentos, estariam a jantar. Morgan manteve-se de avental. Nem um elogio ao jantar, só o mesmo sorrisinho elegante enquanto ia virando ligeiramente a cara de lado para pôr o garfo, delicadamente, à boca, pequeno pedaço a pequeno pedaço. Tudo aquilo se transformava numa cómica narrativa surreal e a ideia de Morgan ganhava cada vez maior luz trágica e bem real. Quando seria o momento ideal? “Private Investigations estava quase a chegar ao fim e, num momento de suspanse, preparava-se para dar lugar à música seguinte: “Your latest trick”. Nem mais. Morgan sentia-se um joguete nas mãos de Stella. Juntou os pratos sujos no lava-loiça e fez café. Quando acabaram de beber café, olhou-a e tentou começar uma conversa. Pensamentos desconexos, raiva, frustração, pavor, ódio… deram lugar a um convite para dançar a próxima música, como tantas vezes fizera quando ainda eram só namorados. Ela abriu os olhos espantada, sorriu e disse – Porque não...? – Levantaram-se. Aproximaram-se e abraçaram-se. Enquanto os corpos se iam habituando ao ritmo da música, Stella trauteava a melodia e Morgan cantava a letra baixinho ao seu ouvido. Morgan aproveitou tudo o que pode: o aroma dos seus cabelos, o toque da sua mão na dele, o movimento do peito e do ventre apertados contra os seus e o encontro de pernas. Como podia andar a enganá-lo? Só podia ser da sua imaginação! Começou a sentir vontade de chorar no seu ombro e agonia… Pôs a mão à barriga suavemente, tocou na dela, imaginando que o filho imaginário do suposto outro era seu e meteu descansadamente a mão no bolso do avental. Pensava na letra da música… Não sei como isto aconteceu… aconteceu tudo tão rapidamente… Só parou quando sentiu a pasta quente e escorregadia descer-lhe pelas mãos e empapar-lhe as pernas, até ouvir cair os pingos encarnados que se confundiram com o mesmo tapete onde tinha chorado minutos antes, e viu-lhe os olhos fora de órbita em espanto mortal. Continuou agarrado a ela a dançar até a música acabar.

2 comentários:

Unknown disse...

Lindo!!! A musica faz todo o sentido!

Giuliana Fierro Diaz disse...

ME ENCANTÓ!!! NO CONSEGUÍA PARAR DE LEER UNA VEZ QUE COMENCÉ!!! La música es buenísima!

Giuli.