domingo, 31 de janeiro de 2010

As cores da cegueira

Ana Luísa tinha nascido cega. Helena, sua mãe, sentiu como é óbvio um enorme desgosto. Não pelas suas próprias expectativas depositadas numa criança que nem sequer quisera saber o sexo para ser surpresa, senão pela forte privação que a filha iria viver toda a sua existência. Então e as cores, as pessoas, a beleza… o perigo… as estradas cheias de carros, as pessoas com más intenções... O campo de defesa de Ana Luísa estaria limitado à extensão das suas mãos, ou no máximo à terrível bengala da pena dos outros. Depois de falar com o médico especialista sobre o que ocorrera e o que poderia ou não, neste caso não, ser feito, Helena afirmou-se forte e determinadamente – Há de ser uma criança como as outras. Estimularei os outros sentidos de tal forma que o seu mundo nunca será escuro. – Levou-a para casa embrulhada na manta branca que ela nunca viria, a sua primeira manta, reparou nos grandes e belos olhos abertos castanhos acinzentados com laivos de mel e chorou. Os olhos da criança moviam-se muito. Helena apercebeu-se que teria de estimular o tacto, a audição e o olfacto. Mal chegou a casa, foi directamente ao gira-discos e pôs as catorze valsas de Chopin a tocar suavemente. Que música alegre e inspirada! Pegou na recém-nascida ao colo e começou a dançar lentamente e a murmurar ao som da música enquanto lhe acariciava as mãos. E todos os dias dos primeiros dias de Ana Luísa, pôs Chopin a tocar. Depois veio Bethoven e Mozart. Falava com ela o tempo todo em voz de adulta e contava-lhe passo por passo o que ia fazendo com o seu corpo ou enquanto tratava das suas coisas. Cantava para ela canções inventadas que contavam as cores céu, da terra, do mar, da pele, das suas roupas… Decidiu logo que a vestiria com muita cor, alegre, suave como o choramingar dela. Esqueceu parte do enxoval branco neutro que havia comprado e encomendou na loja para crianças mais próxima de sua casa as cores do arco-íris. Ana Luísa cresceu calma, agitando os bracinhos sempre em busca de contacto físico com a realidade. Uma vez que Helena tinha deixado de trabalhar por receber uma herança da sua tia-avó que não tinha filhos, o tempo do mundo era todo seu. Bolas de borracha de levar à boca com diferentes saliências, rocas com diferentes sons, bonecos de materiais estimulantes, tudo o que pudesse apelar à sensorialidade, e sempre música a tocar. Conseguia fazê-la rir com cócegas nos pés e mais tarde mover-se para a frente e para trás seguindo a música. O tempo foi passando e as visitas não estranhavam a criança. Entravam em pezinhos de lã para não a assustar e iam-se aproximando aos poucos, conforme Helena lhes tinha pedido. Tratavam-na como uma adulta. Tocavam-lhe na mão e apresentavam-se em tom doce e suave e, então, pegavam-na ao colo. Aos dois anos, Luísa já parecia sentir alguma frustração. A mãe teve de arredar todos os móveis e cobriu a casa de fofas alcatifas. Queria gatinhar e levantar-se livre e tinha a presença da mãe sempre por trás pronta a ampará-la. Helena decidiu que antes de ir para uma escola de cegos, teria de aprender a circular pela casa sem se magoar, então, levava-a pelas mãos ora fazendo-as tocar na mobília, numa parede seguindo pelo friso de madeira e depois de volta pela parede oposta. Dizia-lhe nos infinitos percursos repetidos – Aqui é o teu quarto, a cama ao fundo, o armário na parede da frente e do outro lado os brinquedos. Sais, estás no corredor. Para este lado temos, aqui, a casa-de-banho. – E seguia sempre pelo friso até à ombreira. – Aqui é o quarto da mãe… Aqui é a sala... E aqui é a cozinha… A porta da rua está em frente, mas está trancada. – E tudo de volta para trás. Cada coisa tinha o seu lugar e não deveria mudar para que Luísa soubesse sempre onde encontrar cada objecto e saber com que o que contar ao andar pela casa. De vez em quando, lá havia um choque, um tombo, um desespero seguido de choro sofrido, mas rapidamente se punha de pé e tacteava de novo o ambiente e recuperava a confiança. Seis meses antes de Luísa entrar para a escola, tinha cinco anos, Helena quis-lhe ensinar as cores. Já haviam tido várias conversas sobre como era o mundo para cada uma delas e cada vez que Ana Luísa perguntava – Como é, mãe? – ficava a aflição de dizer a cor de determinado objecto. Decidiu que descobriria forma de lhe dar a conhecer as cores, nem que fosse por sensações semelhantes. Este pensamento levou-a a lembrar-se de um livro das suas aulas de desenho no liceu e foi buscá-lo com a criança pela mão. – Estamos no lugar dos livros. Os livros têm muitas coisas interessantes e bonitas para aprender, mas os teus vão ser ainda melhores que estes, vais poder lê-los com as mãos! – Tirou o livro para fora, mas nem precisou de o abrir para se lembrar da matéria da “temperatura das cores”. Cores quentes e cores frias. O suficiente! Mas como lhe iria explicar a sensação visual que uma cor transmite? Olhou vagamente para o lado procurando respostas quando encontrou a um canto esquecido desde o Inverno passado o aquecedor a óleo. Sentou a criança no sofá e pediu-lhe que ficasse quieta – Vou mostrar-te uma coisa muito especial! Vais conhecer um bocadinho do meu mundo que passará a pertencer ao teu… – Arrastou o aquecedor chiando e ligou-o à ficha eléctrica. Começou – As cores que a mãe vê são reflexos de luz absorvidos pelos nossos olhos, quando estes podem ver. O mar, por exemplo é profundo, tem correntes e é frio. – Colocou-lhe a mão no aquecedor de metal ainda gelado – o mar é azul. O mar é frio. À medida que o aquecedor ia aquecendo lentamente, repetiu o exemplo – os campos de relva bicuda e fofa recebem algum calor do sol e da terra. A relva é verde. – Pôs-lhe a mão no aquecedor ligeiramente menos frio – O verde também é frio, mas menos que o azul. O verde é frio – Quando o aquecedor já estava morno, continuou – a areia é fina e rugosa, feita de pequenos grãos que são aquecidos pelo sol; a areia é amarela. – voltou a por-lhe as mãos no aquecedor – A areia é morna. A areia é amarela. – Seguiu pelo laranja dando o exemplo da manta quentinha cor-de-laranja que normalmente aquecia Ana Luísa enquanto a mãe fazia o jantar e depois passou ao encarnado – Lá ao longe, o sol é uma grande bola vermelha de fogo que aquece os nossos dias e os ilumina. É preciso ter cuidado com o sol. – Mão no aquecedor bem quentinho – O sol é quente. O sol é vermelho! – As duas radiantes passavam as mãos ao de leve pelo aquecedor – Ui! Ui! O vermelho é quente! – Cuidado com o sol! – Ria a Luizinha – Estou desejosa de saber a cor da minha saia de folhos tão elegantes..! Helena levantou-se e foi buscar uma travessa de framboesas com chantilly.

1 comentário:

duende isabelinha disse...

ADOREI!!!Está lindo!adaptado dá para uma óptima história para cianças.Tens imenso jeito e imaginação.Continua a escrever assim!