sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Numa noite de temporal

A voz do velho ecoa do monte ao chamar as cabras. O decrépito assobio do vento intensifica o chamamento e as árvores avisam os animais balançando ferozmente. Vêm aí chuva forte de Inverno e pode ser que chova toda a noite. Pastor, vem aí um carrascal... – diz o velho ao cão. O suposto aparecer do grandioso pôr-do-sol que é razão de contemplação, tornou-se num espesso disfarce pardacento e ouvem-se os badalos a aproximarem-se no escuro que não tarda. Por entre massa opaca de nuvens, umas nodulosas, outras planas e cerradas, tímidas e esparsas abertas de breves incandescências loiras e ruivas quase não se notam naquele desfile de fatiotas cinzentas tão iguais. O velho solta o Pastor que a ladrar em redomas às cabras vai morder os calcanhares às patas das mais teimosas. Todas fechadas em camas limpas, as cabras ficam na sua impaciência assustada. Mais uns fortes assobios triplicados pelo soar dos desfiladeiros das montanhas em que bate o vento e o simples monte fica sozinho, por fim, isolado até ao amanhecer. Mas se tudo parece calmo ao lume do velho solitário, a noite o velho engana. Lá fora, os assobios continuam para baforadas agudas tremelicantes e infindáveis e inspirações de gigante semi-adormecido. A chuva por fim cai brutal e, em casa do velho, ouvem-se as goteiras de metal feitas instrumento musical desconcertado. Ele pega no pedaço de carne feito ao lume e trinca-o descansado. Antes da segunda trinca, levanta-se para ir pôr os alguidares de plástico e metal no chão onde caiem ribeirinhos dentro de casa. Enquanto volta a comer, serve-se de vinho tinto e liga o rádio inutilmente, a chuva roubou a frequência para a sua ópera a meias com o soprano vento. Por volta das dez da noite, e depois de meia garrafa bebida, o velho sente-se inquieto. Pergunta-se a si próprio como pode o vento e a chuva incomodar um homem como ele? A pele trigueira enrugada, as mãos calejadas, as calças ruças e os sapatos sujos comprovam-no. Ele é um homem do campo, sempre foi. Mas naquela noite, sente uma espécie de pavor que o leva a trancar a porta e depois a destrancá-la para ir rapidamente buscar o capote para fechar as portadas das janelas por fora. O ar está gelado. Entra e esfrega as mãos por cima do lume, tão próximo que quase se queima não fossem as mãos estarem molhadas. Decide ler. Enquanto não mergulha na história, pergunta-se se as cabras estarão bem… E aí apercebe-se de que se os animais do campo se assustam com o temporal, porque não há de ele, bicho ser humano do campo sentir o mesmo? Já não há heróis! – recita bem alto aliviado mas, perante o prazer que o tornedó impôs, depois daquela voz que se ergueu confiante, o lamaçal e a ira dos céus o calaram. Resolve continuar a ler. Mais uns minutos e oscila entre ir buscar o Pastor para o proteger a si ou quedar-se quieto em casa. Mais uns momentos de solidão no calor do carvão contrastante com a pedra fria das paredes e começa a adormecer tapado dos tornozelos às orelhas com uma manta xadreza oferecida pela irmã. Começa vagamente a mexer-se e a sonhar com a irmã, com as ruas do Porto… da última vez que lá foi estava calor, era pleno Agosto… um sol de braseiro… No dia seguinte, foram encontrá-lo ardido queimado morto por uma faísca que tão bem o aquecia e que saiu do carvão, do lume que se foi espalhando por cima dos tapetes e da manta. Provavelmente não sofreu, o fumo deve tê-lo intoxicado primeiro, numa casota tão pequena destas – reportaram as autoridades à irmã e ao cunhado acabados de chegar da cidade ao monte onde continuava a chover. Ele bem que se sentia inquieto com o vento e a chuva… mas foi-se ao contrário.

2 comentários:

Anónimo disse...

que estranho, estes arrepios... ;)

isabel braga disse...

Muito bom!!Gosto do final..nao estava a espera!!!;)