segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Ó Dona Rosa

Houve em tempos uma mulher, um raio de uma mulher tempestuosa, de arranques de humor, variações de notas ora agudas ora graves – vozes de comando. Ora essa mulher possuía um botequim no Bairro Alto; isto na época das putas, dos bandidos, bandidos ainda os há, as putas foram-se e vieram as cabras; e a Dona Rosa, o diabo da mulher lá aguentou os tempos difíceis sempre com o mesmo temperamento de fazer cliente bêbedo piar fininho. As putas chamavam-lhe brejeira. Os bêbedos, patroa, e a bandidagem não se atrevia a roubar à sua porta, ou lá vinha palavrão, ora agudo ora grave, de acordar os vivos e os mortos e a guarda que descasava encostada às paredes, balde de água suja e vassourada da grossa. Chegou a expulsar ratos do porão ao pontapé e eles lá foram a chiar desnorteados, ora rumo à pia, ora para trás do balcão, ora finalmente para a rua libertos para o ar fresco mais fétido das ruas porcas que não eram lavadas senão pela chuva que não caia há duas semanas. As esquinas, a cheirar a urinol, povoadas de garrafas partidas que rolavam pelas ladeiras. “Aqui não é lugar para senhoras, vai que uma escorrega num caco e lá vai ruela abaixo de escantilhão, a roçar o cu na pedra escura.” Ficaram manchas da sanguinária no chão e no chinelo branco mais que sujo da Rosa, mas ninguém se atreveu a mexer-se durante o espectáculo, excepto algumas das mulheres, não senhoras, mulheres, operárias fabris amantes dos bêbedos, que levantaram os botins do chão para os pendurarem nos ladecos dos bancos. Também elas têm brio e sensibilidade, ora! E ainda se ouviu um gritinho ou dois de pavor. Mas a Dona Rosa, ó Rosa! A Rosa marafona, de braços gordos ao léu e rabo a transbordar da saia de varina em cetim, lançou rápidos olhares de viés furibundos a quem gemeu e lá disse: “Tás com dores? Deve ser da foda que mandaste naquela esquina há bocado!” “Mais vinho da casa! Que já que não se canta o fado, canta-se ao som do gargalo”, ouvia a Dona Rosa, a Rosa, casada, separada, farta da inércia de alcoólico do Fernandes, e viúva, tinha quatro filhos matulões, todos homens, entre os quinze e os vinte e três anos. Armadores, pescadores, feirantes, ardinas, trambiqueiros eram o orgulho da mulher que todas as tardes, lá para as sete, sete e meia, ainda de dia nos dias mais longos do ano, abria as portas do boteco para aturar os mesmos de sempre, dia após dia, anos a fio, todos com o mesmo problema do seu antigo Fernandes. Uns iam morrendo, cirróticos, pneumónicos, outros eram perseguidos e presos e desapareciam, e ela lá se queixava, ou de os aturar ou de lhe faltarem os tostanitos que lá costumavam deixar. “É que já nem às cartas se pode jogar!” Ai esta Lisboa… “Tempos duros”, queixava-se a Rosa e todos assentiam com um gesto de cabeça de caneca na boca. Um dia, a Rosa não abriu a horas. Foi esperar o seu mais novo vir das Berlengas, à beira-rio. Um tumulto aguardava-a. “Ai… Não podem viver sem a Rosa, querem ver?”, zangou-se ela rindo. A Rosa, por debaixo daquela rijeza até sabia ser generosa. Quando o filho lhe trazia tremoços do Alentejo nas paragens da travessia, ela oferecia-os a quem bebesse cerveja. Um dia, o Manel das Botas, o sapateiro, levou um amigo que sabia cantar o fado. “Aqui não há fado, que não tenho carcanhol para pagar a pássaros!” ruía a Rosa. “Este chilreia de graça, o Rosa! Traz-lhe um jarro de vinho, que hoje pago eu!” Eis que o fadista cantou e cantou e deixou os ébrios de lágrimas a escorrerem pela face. Beberam e brindaram e beberam e pediram sempre mais uma musiquinha enquanto a voz e o sentimento do fadista aqueciam ao ritmo das goleadas no vinho carrascão. A Rosa abespinhada apercebeu-se do potencial de negócio que para ali vinha. Um fadista sério e sóbrio leva dinheiro, um fadista que já vem bem aviado, só pede mais umas canecas. “O Zé Fontes! Passa cá na sexta-feira! Levas outro jarro de vinho do bom cá da casa!” Ah Rosa, Rosa Maria Ermelinda Natércia José, tu que vieste de burro, em garota, desde os montes dos arrabaldes de Lisboa, estás a começar a fazer daqui uma boa coisa, matutou. Durante três anos, o Zé Fontes lá apareceu de quando em quando e cantou e chamou clientela da rua com os seus fados de Coimbra, e depois lá inovou e começou a cantar os novos fadistas lisboetas, até que a Rosa viu que o lucro era incerto e lhe propôs: “O Zé, vens cá às quartas, sextas e sábados e dou-te parte das noites, mas olha que é pouco! Que dizes, velho?” “Oh-oh”, respondeu-lhe o Zé, e assim nasceu a primeira casa de fados do Bairro Alto, há muito tempo atrás, onde se passou a cantar o fado vadio. Por isso, se virem um dono de boteco, numa casa de fados de porta aberta, com ar sisudo e fanfarrão, imaginem se não pode ser um dos descendentes da Dona Rosa ou apenas alguém que sabe a sua história e a guarda na memória.

Alguém que leu este texto e que leu o Carteiro de Pablo Neruda, apontou que a caracterização da minha Rosa era muito semelhante à da Rosa do outro livro. Cabe-me dizer que é pura coincidência, pois infelizmente nunca li tal livro. Mas hei de ler.

2 comentários:

MISS PU disse...

A MEI.

muito bem escrito Juzinha, os meus mais sinceros parabéns.

senti todo o ambiente do tasco do bairro alto, snifei o cheiro a urinol do mesmo bairro alto e vi uma dona Rosa ao melhor estilo Custódia lá da estrela.

muito bom. continua amiga :)

grande beijinho da sempre amiga Pu

Giuliana Fierro Diaz disse...

Leer esto cuando estoy a 22 días de salir de mi Lisboa es sentir y ver la ciudad en la que CRECÍ! Lo voy a imprimir y lo voy a poner en un marco en la pared de mi cuarto en Lima, así cada vez que sienta "saudades", que es la mejor y más bonita palabra para describir esa nostalgia que estoy segura que sentiré, sólo tendré que leer esto y me trasladaré a esa MI Lisboa.